Nas últimas semanas, duas movimentações da Meta - dona do Facebook, Instagram e Whatsapp - chamaram atenção da comunidade internacional: o fechamento do departamento de checagem de fatos (e adoção de modelo semelhante ao X, com notas da comunidade) e o encerramento de seus programas de diversidade e inclusão dentro da empresa. Essa última é apontada como um “aceno” a Donald Trump, que já se declarou contra esse tipo de programa e está retornando ao poder como presidente do país após vitória em eleição contra a democrata Kamala Harris.
Mas a empresa de Mark Zuckerberg não está sozinha. Além da Meta, outras grandes empresas e multinacionais com sede nos Estados Unidos também encerraram seus programas classificados como DEI (na sigla em inglês, diversidade, equidade e inclusão). Amazon, Microsoft, Walmart, Ford, Boeing, McDonald’s e American Airlines são alguns dos exemplos de empresas que anunciaram recentemente o encerramento de programas voltados às políticas afirmativas. Na contramão, a Apple, em comunicado aos acionistas, defendeu os programas de diversidade e pediu para que votem contra o encerramento do DEI na assembleia prevista para 25 de fevereiro.
Nos argumentos sobre o motivos dos encerramentos, parte das empresas aponta uma decisão da Suprema Corte americana, de 2023, que considerou inconstitucionais as ações afirmativas para aumentar o número de negros, hispânicos e outros grupos considerados minorias entre os estudantes americanos. Outro ponto é que o Centro Nacional de Pesquisa de Políticas Públicas (NCPPR, na sigla em inglês) também afirmou que esse tipo de programa pode expor as empresas a riscos financeiros, de litígio e de reputação.
Além disso, algumas delas sofreram pressão de grupos conservadores que consideram esses programas como excludentes para pessoas que não estão contempladas no guarda-chuva das minorias. Ou seja, apontam um preconceito “reverso”, embora esse seja um conceito inexistente e criticado por especialistas. Um desses grupos é o America First Legal, liderado por Stephen Miller, cotado para ser assessor de questões de imigração no governo Trump.
Especialistas ouvidos por O Tempo analisaram esse “efeito manada” e qual seria o possível impacto para a sociedade e para o Brasil.
O que são ações afirmativas?
Na prática, tratam-se de programas que incentivam a contratação ou a formação profissional de pessoas com deficiência, negros, mulheres, membros da comunidade LGBTQIAP+ ou qualquer outro indivíduo que pertença a um grupo historicamente discriminado.
A coordenadora da pós-graduação em Design de Futuros, Inovação e Estratégia da PUC Minas, Sabrina Mendes, lembra que as ações afirmativas existem para acelerar um processo de reparação a uma sociedade construída em uma base desigual. “O capitalismo se baseia na desigualdade. Quando a gente concorda com isso, o mínimo que podemos fazer é algo que possa reverter ou minimizar esses impactos”, diz.
A especialista, que também é cofundadora da Chicas, uma consultoria especializada em estratégias para a equidade nas empresas, afirma que esses programas contribuem não só para a reputação da empresa, como também podem trazer resultados, inclusive financeiros. “Quando a gente pensa em ter mais diversidade dentro da empresa, a gente está falando de ter mais diversidade de pontos de vista e de conhecimentos para tomar decisões”, argumenta.
“Homens brancos, dentro de uma mesma faixa etária e que vieram do mesmo lugar, tomando decisão dentro da empresa têm um campo de perspectiva muito limitado”, exemplifica. “Uma empresa de maquiagem que não considera no Brasil, que tem mais de 50% de população negra, uma maquiagem para pele negra está perdendo venda para 50% da população brasileira. Então, em termos de negócio, é muito inteligente ter diversidade”, afirma.
Ela lembra ainda que programas de inclusão contribuem para a equidade, que é diferente de igualdade. Na fala de Zuckerberg, ao comentar o encerramento dos programas, ele diz que agora deverá “aplicar práticas justas e consistentes que mitiguem o preconceito contra todos, não importando sua origem”. “Quando eu falo que todo mundo é igual, eu não estou enxergando ninguém”, rebate Sabrina. Segundo ela, pensar em equidade é uma forma de promover a igualdade enxergando e respeitando as diferenças e mitigando seus impactos.
Mas por que as empresas estão acabando com os programas?
Apesar de as empresas anunciarem a decisão da Suprema Corte como um dos motivos, especialistas apontam outros fatores que podem estar nas entrelinhas. Para a professora de MBAs da FGV, Anna Cherubina Cofano, deve haver algum motivo que não foi divulgado para não gerar polêmica. “Talvez não tenham tido os resultados esperados com esses programas. Até porque, contra resultados, nenhuma empresa discute”, supõe. “Talvez os resultados não foram tão efetivos para o investimento, o que não significa que vão deixar de investir em diversidade, até porque isso é uma ação complementar e que tem que existir”, afirma.
Já Sônia Lesse, estrategista em gestão de pessoas e sócia-diretora da Profissas, pontua que muitas empresas não veem resultados em seus programas de diversidade por falta de estratégia. “Os programas são criados sem planejamento, sem estratégia, sem um objetivo de futuro. Quando não se tem uma visão para o futuro do negócio, as coisas não se sustentam”, diz.
“Tem empresas que colocam em xeque o programa de desenvolvimento de pessoas negras e dizem ‘ah, eles participam dos programas e depois pedem demissão’. Não, isso não tem nada a ver com a ação afirmativa! Isso tem a ver com a sustentabilidade desse programa. Porque a pessoa participa, por exemplo, de um programa para desenvolver liderança. E, aí, passam cinco anos, e ela não recebe uma oferta sequer para uma posição de liderança e ainda assiste outras pessoas ocupando a posição. O que ela faz? Vai embora”, relata.
Sônia Lesse acrescenta ainda que muitas empresas criam os programas de diversidade de forma separada, sem uma integração com a cultura da empresa, muitas vezes para atender uma demanda por participação nas agendas de ESG (na sigla em inglês, Ambiental, Social e Governança). “Muitas empresas acabam atribuindo o fracasso a uma ação afirmativa, quando, na verdade, é um fracasso na política institucional. As empresas que não estão olhando para as políticas afirmativas como uma ação que vai impulsionar as políticas de gestão de pessoas, elas vão fracassar”, diz.
Acabar com os programas significa um retrocesso?
Um dos pontos dessa discussão seria um possível retrocesso na evolução para um mercado de trabalho mais inclusivo e igualitário. Na visão de Anna Cherubina, o que se vê hoje é, na verdade, uma readequação do mercado, que está chegando a um equilíbrio. “Todo o trabalho que foi realizado não vai se apagar. Não quer dizer que, excluindo a política de diversidade, que a diversidade vai deixar de existir nas empresas”, pondera.
Sabrina também lembra que as empresas entendem que a diversidade é necessária para a sustentabilidade. E, mesmo que acabem com os programas de inclusão, não vão acabar com as contratações inclusivas. “Acredito que, apesar desses comunicados públicos, essas empresas, internamente, vão fazer o mínimo para conseguir manter a diversidade no seu time”, afirma.
Já Sônia Lesse acredita que, em um futuro breve, as empresas que encerraram seus programas de diversidade vão ter problemas internos. “Essas mesmas empresas estarão buscando milagres no mercado de treinamento e desenvolvimento, com palestras de comunicação não violenta e workshop para liderança, porque as lideranças são abusivas, mentoria de liderança, porque a liderança está sofrendo processo por assédio ou por discriminação. São problemas que já existem hoje e, sem essas políticas, são problemas que vão piorar”, afirma.
Isso tudo reflete no Brasil?
Sabrina acredita que há muito mais empresas engajadas com os programas de diversidade no Brasil e que a decisão de empresas de fora não terá grande impacto no país. “A gente tem a Natura, Boticário, por exemplo, como grandes players que lideram projetos muito pioneiros nesse sentido. Eu acho que a gente tem que ter cuidado para não definir toda uma realidade com base em cinco ou seis empresas”, diz.
Sônia pontua que, se houver algum impacto, será uma decisão de um ou outro gestor movido por um pensamento político-ideológico. “Nós temos uma legislação que viabiliza as políticas afirmativas. Então, as empresas que decidirem surfar nessa onda de encerrar programas de diversidade serão para fazer valer os anseios de um tomador de decisão (dono da empresa) que não concorda com as políticas afirmativas já conduzidas no país e garantidas por lei”, diz.