A Nicarágua tirou a nacionalidade de 222 prisioneiros políticos, que foram deportados para os Estados Unidos e descritos como "traidores da pátria" em sentença lida por tribunal em Manágua.
Quase simultaneamente à expatriação dos presos, a Assembleia Nacional do país, controlada por partidários do ditador Daniel Ortega, aprovou em primeira votação uma lei de reforma do artigo 21 da Constituição para prever a perda de nacionalidade de quem for considerado "traidor da pátria".
Essa reforma, segundo a Constituição, precisaria passar por comissão especial e por uma segunda apreciação para ser aprovada e entraria em vigor após publicação em Diário Oficial.
Logo após a primeira votação, porém, uma lei para "regular a perda da nacionalidade" foi também aprovada pela Assembleia, segundo o portal de notícias da instituição. De acordo com o texto, a vigência é imediata e não precisa passar por outras tramitações ou publicações oficiais.
Utilizada nesse caso contra concidadãos, a deportação é um recurso para o retorno de migrantes regulares ou irregulares ao seu país de origem. Existem hoje cerca de 250 opositores presos no país, que se autocratizou após as manifestações contra a reforma da Previdência proposta pelo regime de Ortega em 2018. Durante os protestos, ao menos 355 pessoas foram mortas, segundo a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).
Autoridades com conhecimento sobre o assunto falaram ao jornal americano The New York Times que os prisioneiros foram libertados por Manágua em uma tentativa de reaproximação com Washington, que tem feito sanções ao regime e à família de Ortega diante do recrudescimento da repressão a opositores nos últimos anos.
Sob anonimato, essas autoridades disseram que foi oferecida a 224 prisioneiros a possibilidade de buscar refúgio nos Estados Unidos —dois deles teriam recusado a proposta.
O Departamento de Estado americano afirmou que o país "facilitou o transporte" dos presos e assegurou que os libertados "abandonaram a Nicarágua" voluntariamente e poderão viver por dois anos nos EUA.
"A libertação desses indivíduos, um deles cidadão americano, pelo governo da Nicarágua marca um passo construtivo para se falar sobre abusos de direitos humanos no país e abre portas para aprofundar o diálogo entre EUA e Nicarágua", disse Antony Blinken, chefe da chancelaria americana.
"[Os sentenciados] violentaram por diferentes ilícitos o ordenamento jurídico e constitucional, atentando contra o Estado da Nicarágua e a sociedade nicaraguense, prejudicando o interesse supremo da nação", afirmou o juiz Octavio Rothschuh.
O advogado e ex-deputado da Nicarágua Enrique Sáenz qualificou a medida como "disparate", já que a reforma não passou por uma comissão especial nem foi discutida em duas votações, como manda a Constituição. "É uma palhaçada do ponto de vista legal", disse à Folha, acrescentando que a pena não poderia ser usada no caso dos agora ex-prisioneiros. "De acordo com qualquer Constituição do mundo, incluindo a da Nicarágua, nenhuma pena se pode aplicar retroativamente."
"Foi tamanho o desespero dos deputados que eles se esqueceram de reformar este artigo da Constituição: 'Nenhum cidadão pode ser privado de sua nacionalidade. A qualidade de nicaraguense não se perde pelo fato de adquirir outra nacionalidade'."'
Na sua análise, a manobra pretende tirar o passaporte nicaraguense dos ativistas, dificultando a mobilização nacional. Envia também a mensagem de que opositores não poderão participar da vida política do país e consola apoiadores do regime, que podem interpretar a libertação dos presos como mostra de fraqueza.
O escritor nicaraguense Sergio Ramírez, que havia sido vice de Ortega em seu primeiro mandato no fim da década de 1980 e hoje está exilado na Espanha, comemorou a deportação, que chamou de "liberdade".
"Hoje é um grande dia para a luta pela liberdade na Nicarágua, pois tantos prisioneiros injustamente condenados ou processados são libertados de prisões onde nunca deveriam ter estado. Eles vão para o exílio, mas vão para a liberdade", escreveu em seu perfil no Twitter.
No final da década de 1970, Ortega foi um dos líderes da Revolução Sandinista que derrubou a ditadura dos Somoza e participou da primeira junta que liderou o país após a queda da dinastia, entre 1979 e 1990, quando saiu pacificamente do poder. Ele voltou à Presidência em 2007 e desde então tenta inviabilizar a oposição.
Nas eleições de 2021, quando foi reconduzido ao cargo pela quarta vez consecutiva, os sete postulantes de oposição estavam presos, acusados de lavagem de dinheiro e traição à pátria.
(DANIELA ARCANJO E GUILHERME BOTACINI / Folhapress)