O primeiro-ministro Binyamin Netanyahu e seus aliados deram nesta segunda-feira (24) uma surra na democracia israelense. Aprovaram no Parlamento o primeiro passo de uma controversa reforma judicial que concentra os poderes nas mãos do governo, removendo um importante mecanismo de fiscalização.

Israel, que há tanto tempo se promove como a "única democracia do Oriente Médio", agora se parece um pouco mais com seus vizinhos. Sai fortalecida a ultradireita religiosa, segundo a qual o Estado tem que ser antes de tudo judeu. Vide o que disse o extremista Itamar Ben-Gvir, ministro de Segurança Interna, ao celebrar a aprovação da medida. Para ele, o "Estado de Israel", agora, é "mais judeu e mais democrático".

A democracia que apanhou de Netanyahu e Ben-Gvir, porém, já não andava tão forte. É verdade que o sistema israelense funciona melhor, por exemplo, do que o da Síria, uma ditadura violenta. Também é mais funcional também do que o limitado governo palestino, nas mãos do autocrático Mahmoud Abbas, que, eleito em 2005, nunca mais deixou o poder. Mas Israel está longe de ser um farol.

O país, criado em 1948, ainda não resolveu algumas de suas questões cruciais, como a expulsão e a fuga de 700 mil palestinos, que ainda reivindicam autodeterminação. Israel tampouco solucionou o impasse moral que é a ocupação da Cisjordânia desde 1967, apesar de pressão e condenação internacionais.

A fala de Ben-Gvir sobre um país "mais judeu" é eloquente, nesse sentido. Explicita o projeto de uma direita radical e religiosa que faz vista grossa ao fato de que um quinto da população de seu país é árabe. Isso sem contar o fato de que, nos territórios da Cisjordânia, Israel aplica regimes legais diferentes: civil para colonos judeus, militar para palestinos. É devido a isso, entre outros fatores, que organizações de defesa dos direitos humanos vêm definindo o país cada vez mais como um "apartheid".

O problema é que essa situação, que já era bastante ruim, deve piorar ainda mais. Netanyahu e seus aliados derrubaram o mecanismo de fiscalização dos Poderes que permitia ao Judiciário vetar decisões "não razoáveis". Isso, aliás, enquanto o primeiro-ministro enfrenta diversas acusações de corrupção. Para Netanyahu, o Judiciário é demasiado politizado e intervencionista.

Foi o Judiciário que, no passado, barrou medidas abusivas do governo em relação aos assentamentos judaicos na Cisjordânia ou aos direitos dos palestinos. O premiê tem, agora, trânsito mais fácil ainda. Seus aliados, ademais, prometem seguir adiante com as reformas judiciárias, afetando, em seguida, até o processo de nomeação de juízes. Eles têm uma confortável maioria no Parlamento.

Nesse contexto, há ao menos um sinal de saúde da democracia israelense. Desde o anúncio das reformas, em janeiro, um movimento de protestos tomou as ruas. Israel tem uma esquerda forte e organizada, além de uma sociedade civil antiga e robusta, com organizações de defesa dos direitos dos palestinos.

Reservistas prometem agora não servir o Exército, enquanto os planos de reforma não forem interrompidos e revertidos. É um gesto importante, em um país com serviço militar obrigatório —de três anos para homens e dois para mulheres— e onde existe a possibilidade real e constante de conflito.

Os principais bancos israelenses, Leumi e Hapoalim, liberaram seus funcionários para protestar durante a segunda-feira. Um grupo das maiores empresas israelenses entrou em greve, e até os grandes shoppings fecharam. Nesse vaivém, a moeda israelense já perdeu 8% de seu valor desde janeiro. Com a vitória do governo nesta segunda, manifestantes prometem seguir nas ruas. Suas vozes, porém, parecem apagadas, por debaixo da celebração dos partidos radicais que conseguiram se livrar do mecanismo de controle dos Poderes. Mas nada indica que vão parar de golpear a democracia israelense.

O QUE É A REFORMA JUDICIAL?

A reforma é ampla e envolve vários projetos de lei que atuariam como uma espécie de emenda à Constituição para limitar o poder do Judiciário israelense. As medidas foram apresentadas como parte das chamadas leis básicas, legislação que funciona como espécie de Constituição do país.

Diferentemente do Brasil, Israel não possui uma constituição federal formal, mas usa as leis básicas para definir o papel das principais instituições e as relações entre as autoridades do Estado.

Em linhas gerais, a reforma dá ao Parlamento poder para anular decisões e prevê a criação de um comitê para revisar as nomeações de todos os juízes do país, inclusive os integrantes da Suprema Corte. Na prática, o projeto garante superpoderes ao premiê israelense, Binyamin Netanyahu, e aliados.

O QUE JÁ FOI APROVADO ATÉ AGORA?

A primeira lei aprovada proíbe os tribunais de usar o chamado "padrão de razoabilidade" para invalidar decisões do governo. A medida impacta, entre outros pontos, a nomeação de ministros.

Em janeiro, a Suprema Corte usou o padrão de razoabilidade ao determinar o afastamento do então número dois do governo, Aryeh Deri, devido a uma condenação anterior por fraude fiscal —o político confessou o crime no ano passado, como parte de um acordo judicial para escapar da prisão.

A proposta foi aprovada por 64 votos a zero —a oposição boicotou a votação.

O QUE DIZ O GOVERNO NETANYAHU?

Ao anunciar o plano, em janeiro, o ministro da Justiça, Yariv Levin, fez críticas à Suprema Corte e afirmou que a reforma tem o objetivo de restaurar a confiança da população no sistema.  "Pessoas em quem não votamos decidem por nós. Isso não é democracia", disse ele na ocasião.

O discurso é ecoado por Netanyahu, cujo governo é o mais à direita da história de Israel. O premiê diz que a reforma é necessária para conter o ativismo do que chama de Justiça tendenciosa. Na mesma linha, defensores do governo afirmam que as mudanças são necessárias para restaurar o equilíbrio entre os Poderes e também para facilitar a governança ao restringir as intervenções da Suprema Corte.

O QUE DIZEM OS CRÍTICOS DA PROPOSTA?

Críticos à proposta apontam que a reforma é parte de uma guinada autoritária de Netanyahu, que voltou ao poder em dezembro apoiado em uma coalizão com integrantes de extrema direita. Os opositores dizem que as mudanças removeriam os contrapesos nos quais um Estado democrático se baseia.

Analistas apontam que a reforma pode comprometer a separação entre os poderes e, em última análise, enterrar a democracia de Israel. Também afirmam que a reforma pode aproximar Israel de uma ditadura ou de um regime como o da Hungria, classificada pelo Parlamento Europeu de uma "autocracia eleitoral" — em que há eleições multipartidárias, mas outros pilares democráticos estão ausentes.

O QUE NETANYAHU TEM A GANHAR COM A REFORMA?

Netanyahu está sendo julgado por acusações de suborno, fraude e quebra de confiança em Jerusalém e, segundo especialistas, a reforma pode beneficiá-lo nos processos criminais. O governo poderia, por exemplo, substituir juízes e nomear aliados. Especialistas também afirmam que Bibi, como o premiê é conhecido, pode usar a ameaça da reforma como moeda de barganha para negociar um acordo.

COMO A SOCIEDADE ISRAELENSE TEM REAGIDO?

Milhares de manifestantes têm protestado contra a reforma há meses, em uma das maiores tensões da história de Israel. Os atos atraíram o apoio de seculares e religiosos, ativistas pela paz e militares, além de grupos de direita e de esquerda. Até mesmo os presidentes de bancos se juntaram ao coro de críticas - analistas alertam para o risco da fuga de investidores caso a reforma seja implementada.

Alguns grupos ainda organizam paralisações e greves. Cerca de 10 mil reservistas das Forças Armadas —uma das instituições mais centrais da sociedade do país— afirmaram em julho que iriam cruzar os braços em protesto contra o avanço da reforma judicial.

Diante da pressão, Netanyahu disse ter abandonado um item considerado crucial na sua controversa proposta. Em entrevista ao americano The Wall Street Journal, publicada em junho, o premiê afirmou ter derrubado a regra que permitiria ao Parlamento anular decisões da Suprema Corte por maioria simples.

COMO A REFORMA PODE IMPACTAR OS PALESTINOS?

Os críticos da reforma temem que os direitos das minorias possam ser impactados. Especialistas dizem que o enfraquecimento do Judiciário poderia, por exemplo, desestimular os palestinos a buscar a defesa de seus direitos se acreditarem que os tribunais estejam alinhados ao governo. No ano passado, por exemplo, um tribunal suspendeu os despejos de famílias palestinas no bairro de Sheikh Jarrah, em Jerusalém Oriental, onde grupos judeus reivindicaram a propriedade de terras nas quais as famílias vivem há décadas.

QUAIS SÃO OS PRÓXIMOS PASSOS DA REFORMA?

O Knesset, o Parlamento israelense, entra em recesso no dia 30 de julho e não volta até outubro, devido às férias de verão e a feriados (Rosh Hashaná e Yom Kippur, ambos em setembro). Nesse período, embora os comitês legislativos sigam ativos, em geral não há votações gerais. Até lá, Netanyahu deve tentar mais uma rodada de negociação com líderes da oposição para continuar avançando com a reforma. (DIOGO BERCITO/Folhapress)