Fábio Tozi (*), Leandro Ribeiro Duarte (**) e Luca Bonando (***), Observatório das Plataformas Digitais/UFMG
A recente suspensão do atendimento ortopédico de emergência nos hospitais públicos de Belo Horizonte e a suspensão do serviço da 99Moto em São Paulo revelam uma perversa correlação: o desmedido número de acidentes e mortes envolvendo motociclistas, especialmente de mototáxi por aplicativo. Os dados já compilados revelam uma emergência na cidade, como observou o Superintendente da Delegacia Regional do Trabalho, Carlos Calazans, que propôs a suspensão do serviço até que se tenha a real dimensão dos seus impactos. Debate necessário, pois Uber e 99 operam na cidade desde 2021, sem constrangimentos, enquanto prefeitura e Câmara parecem ter terceirizado parte da política de mobilidade para estas corporações.
O modus operandi das plataformas digitais é conhecido: iniciam suas operações nas brechas da legalidade e, quando consolidadas, utilizam o seu poder de oligopólio para impedir regulações que afetem seu modelo de negócio. Por isso, o debate jurídico não pode se resumir apenas à legalidade operacional do serviço, como desejam as corporações. O município têm o direito – e o dever constitucional –, de planejar e zelar pela mobilidade e pela vida dos munícipes e impedir o serviço de funcionar em áreas ou na totalidade do território é parte de uma política pública. Os aplicativos não existiriam sem território, motociclistas, ruas e passageiros.
Esses motociclistas são jovens, negros e periféricos que se arriscam no trânsito e comprometem sua renda quando se acidentam, como mostram as pesquisas que temos conduzido no Observatório das Plataformas Digitais (OPD/UFMG). Sem apoio das empresas que os contratam e com o fim do DPVAT, Seguro Obrigatório para Proteção de Vítimas de Acidentes de Trânsito, o que resta aos trabalhadores uberizados? A quem recorrem quando sua motocicleta é avariada e não podem trabalhar?
Outra questão é o aumento dos custos no atendimento e cuidados dos acidentados, assumidos pelo Estado, pois as empresas, vejam só, não se consideram empresas de transporte.
Neste imbróglio socioespacial, a articulação entre as prefeituras das metrópoles poderia avançar na definição de critérios comuns a serem adotados por todas. Essa união aglutinaria as resistências, evitando que cada município enfrente individualmente as bilionárias corporações-plataforma.
Além disso, urge o estabelecimento de mecanismos legais que garantam o acesso pelo poder público e pesquisadores às informações de caráter operacional do serviço no espaço urbano. Fóruns permanentes, com participação social, contribuiriam para o controle contínuo do serviço. Definir, por GPS, áreas de exclusão do serviço e velocidade máxima podem aumentar a segurança viária. O fomento a cooperativas e pequenas empresas de mototáxi também é viável, dando maior autonomia aos trabalhadores e adaptando a operação às demandas locais específicas.
Aliás, vale lembrar que é essa a origem popular do mototáxi no Brasil, antes de serem “vampirizados” pelos oligopólios tecnológicos. Deixar a eles a decisão sobre a mobilidade e as condições de trabalho significa pagar um preço alto, que inclui renunciar à capacidade de planejamento do território.
(*) Fábio Tozi, professor do Departamento de Geografia da UFMG e coordenador do Observatório das Plataformas Digitais/UFMG (OPD); (**) Leandro Ribeiro Duarte, mestre em Geografia pela UFMG; e (***) Luca Bonando, graduando em Geografia. Pesquisadores do OPD