Flávio Saliba é sociólogo
Ciência de verdade é neutra, tecnologias não. Estas se movem pelo imperativo econômico da maximização do lucro via aumento da produtividade do trabalho e o corte de mão de obra em vários setores econômicos. Nas últimas quatro ou cinco décadas estes propósitos foram alcançados a um ritmo exponencial, primeiro no setor bélico e, logo a seguir, nos serviços, na indústria e em quase todas as atividades humanas.
Consolidou-se a revolução informacional que propiciou a globalização econômica com todos os seus benefícios e inconvenientes. Entre estes últimos, encontram-se a brutal concentração de renda entre países e internamente a cada país, o desemprego, a pobreza, as maciças migrações internacionais e outros males sobre os quais não há espaço para me estender.
Trata-se do crime organizado, da roubalheira escancarada, da devastação de florestas, do tráfico de drogas, de armas, de pessoas, de órgãos humanos e de animais silvestres, entre outros. Tudo isso emulado pela difusão de uma questionável ideologia da prosperidade e pela ascensão política da extrema direita no plano internacional.
É este pano de fundo que nos permite especular sobre os rumos da democracia e da cidadania em nossa sociedade. Atenho-me aqui à questão do impacto desses fenômenos no declínio dos níveis da cidadania, tal como conhecida nas sociedades ocidentais modernas onde, segundo Émile Durkheim, a crescente divisão do trabalho social propiciou a ampliação da autonomia individual e a interdependência das funções garantidoras da coesão social. Tal cidadania, em suas dimensões civil, política e social hoje se vê ameaçada devido à reorganização dos mercados de trabalho em torno da necessidade de profissionais flexíveis, de tempo parcial ou terceirizados que acabou por gerar a precarização das relações de trabalho.
Com isto, a base da sociabilidade do trabalhador pobre desloca-se do chão da fábrica para as periferias das grandes cidades onde, ao lado da violência do tráfico e das milícias, cresce a adesão a um amplo movimento evangélico conservador.
Este, apesar de propiciar a seus adeptos um sentimento de pertencimento e alguma integração social nas comunidades pobres, interfere ativamente na vida política e nos negócios, funcionando como um partido conservador em defesa de dogmas religiosos e interesses monetários específicos. Liderado, em boa parte, por moradores e políticos populistas locais e nacionais, este movimento representa um retorno ao que Durkheim denomina Solidariedade Mecânica. Esta, garante a coesão social nas sociedades primitivas e tradicionais, (onde a divisão do trabalho é pouco desenvolvida), através da inquestionável figura do chefe político-religioso, das crenças e da severidade das leis penais.
Ao contrário da solidariedade presente nas sociedades modernas, aí não há espaço para a individualidade, a autodeterminação, a divergência política, a liberdade e a igualdade, enfim, a democracia tal como a que ainda move as sociedades capitalistas avançadas. Na atualidade, estas tendências se acentuam com a emergência de lideranças autoritárias em várias partes do mundo contemporâneo, onde os fundamentos da cidadania e da democracia vêm sendo solapados.