Opinião

O que compliance e pipoca têm em comum?

Governança corporativa e administração pública

Por Cristiane Campos de Figueiredo Silva*
Publicado em 30 de maio de 2021 | 03:00
 
 
 
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Compliance – palavrinha da moda –, é um sistema de gestão organizacional, em que a preocupação com a prevenção, detecção e tratamento de fraudes e corrupção é a tônica maior; porém, não se reduzindo a isso, é, antes, revolucionário programa de instauração de uma cultura ética nas organizações. É um verdadeiro princípio de governança corporativa que, paulatinamente, vem se infiltrando na agenda das administrações públicas, sob o rótulo de programas de integridade.

A palavra inglesa incorporou-se ao jargão corporativo, a contar das recomendações do Departamento de Justiça norte-americano (DOJ) após escândalos envolvendo empresas daquele país na década de 70, mas só passou a ser mais largamente utilizada no Brasil a contar da virada do milênio, com outros estrondosos escândalos, onde descobertas práticas de fraudes contábeis e lavagem de dinheiro, envolvendo não só empresas americanas, mas de outras nacionalidades, incluídas as maiores empreiteiras do país.

Com a globalização da economia e união dos países no combate à corrupção, o compliance apresentou-se como medida estrategicamente idealizada para ajudar os organismos internacionais (ONU, OCDE etc.) na prevenção, detecção e tratamento das nefastas práticas corruptivas.

Entre nós, as primeiras referências ao programa vieram no final da década de 90, após a compilação de orientações das U.S. Sentencing Guidelines, do Departamento de Justiça Americano, editadas em 1991. Conforme lições de Milena Donato Oliva e Rodrigo Guia Silva (1), as leis que tratam do crime de “lavagem” ou ocultação de bens, direitos e valores (Lei n.º 9.613/1998 e Lei nº 12.683/2012) já indicavam o caráter impositivo do compliance pelo direito brasileiro, possivelmente porque já exigido, desde 1998, na Resolução n.º 2.554, do Bacen, para atuação em certas atividades. A adoção do programa de compliance também foi recomendada pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), em Guia específico, mas foi com a Lei Anticorrupção (Lei n.º 12.846/2013), seu decreto regulamentador (Decreto 8.420/2015), e com a Lei das Estatais (Lei n.º 13.303/2016), que o programa ganhou realce. De se destacar, ainda, que Instruções da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), desde 2015, determinam a implementação desses programas (2) e muitos Estados da Federação vêm isso exigindo das empresas que pretendem contratar com a administração pública.

Sobre este último aspecto, imperioso mencionar que a recém editada Lei 14.133/2021, que trata das licitações e contratação públicas, torna obrigatório o programa de integridade (compliance) nas empresas com contratos vultosos.

Assim é que, à semelhança do milho de pipoca, o compliance veio sendo aquecido no fogo baixo das expectativas internacionais e nacionais, para “estourar” como alimento das organizações, privadas ou públicas, passando, pois, ao cardápio dessas instituições, agregando-lhes valor.

No entanto, à exemplo da pipoca, nenhuma saciedade pode ser conferida com uma só medida (um só grão), sendo necessária a coesão e integração de muitas, para proteção dos ativos tangíveis e intangíveis das empresas. Vale dizer, as “boas práticas”, configuradoras de uma boa governança, capazes de conferir satisfação em todos os interessados nos negócios da empresa (stakeholders), devem ser desenvolvidas de forma integrada, temperadas pelos donos, em conformidade com seus particulares paladares (estratégias, objetivos e apetites a riscos).

Começando pela instituição de um código de condutas, as empresas precisam documentar e divulgar políticas e procedimentos; estabelecer controles internos e um canal de denúncias de ilícitos e desvios éticos; precisa investigar as denúncias, monitorar e auditar os procedimentos (especialmente os financeiro-contábeis) e abraçar a diversidade nos seus quadros, melhor dizendo, a inclusão das minorias.

E, como normalmente se rejeita pipoca insossa, cada um saborizando a sua como lhe convém (doces ou salgadas), deve-se rejeitar igualmente programas de compliance insossos, transplantados, sem adaptação, ao palato das organizações. Se é certo que a fragrância dos milhos estourados e o barulhinho das mordeduras aguçam os sentidos dos que estão próximos, arrebatando-lhes num festim comum, é igualmente certo que, um programa de compliance bem urdido, contendo preciosas orientações éticas para todos os colaboradores, parceiros e fornecedores, porque atraente de investimentos, culmina por promover replicações de iniciativas semelhantes, contribuindo para uma contagiante jornada contra a corrupção.

Do mesmo modo que o repositório das pipocas prontas – grande ou pequeno –, deve ser de fácil manuseio, podendo ser alocado no colo do apreciador, os programas de Compliance – simples ou complexos –, em consonância com o tamanho das organizações, também devem ser facilmente manipulados, suas principais ferramentas disponibilizadas para os públicos interno e externo.

No tocante às pipocas, a temperatura da chama, monitorada pelo dono, é rastilho para os estopins, desencadeados de forma ágil ou mais demorada, o que influi, inclusive, no sabor. Muito tempo em panela quente compromete o sabor da pipoca, que pode ficar queimada, com gosto de fumaça. À semelhança, a alta administração das organizações, se comprometendo com os programas de compliance, têm de monitorá-los constantemente, de molde a impedir que uma área se sobreponha à outra, restringindo-lhe, de forma substancial, a importância. É que todas as áreas das empresas e corporações, assim como todas as áreas da administração pública, são chamadas para unidas, satisfazer a compulsão por lisura, não se admitindo possa qualquer uma delas minimizar o sabor das demais.

Os adolescentes, inexperientes nas artes culinárias, precisam de livros de receitas para fazer boas pipocas e, quanto mais se empenham na tarefa, mais fácil esta se lhes apresenta, sendo provável que, por medida de economia de tempo e dinheiro, venham a se valer das famosas e instantâneas “pipocas de micro-ondas”. Também com os programas de compliance o tempo de maturação faz desenvolver, nos colaboradores, introjeção da cultura ética, conhecimento das disposições dos códigos de conduta e uma certa maestria na arte de rodar o programa é observada, sendo que, para melhor controle dos riscos, não raro as organizações se valem de avançadas e ágeis tecnologias, para realização de “due diligence” e armazenamento de dados.

Sobre o particular aspecto das “due diligences”, práticas consistentes em pesquisas ou averiguações antecipadas de dados de fornecedores, representantes ou colaboradores, a analogia com as pipocas também se aplica: grãos provenientes de culturas ruins, tocadas displicentemente pelos agricultores, dão pipocas ruins, comprometem o prazer da ingestão...O que esperar, então, de terceiros, provenientes de outros quintais, que não abraçam os valores éticos prezados pela organização, tampouco agem com transparência? Calha lembrar que, consumidores conscientes de milhos de pipoca verificam de toda a cadeia produtiva, se aderente às leis e princípios éticos, rechaçando safras e marcas resultantes de práticas desalinhadas com os direitos humanos e reclamos de sustentabilidade. Do mesmo modo, faz-

se necessária uma acurada análise da proveniência, qualificação e experiência pretérita dos terceiros com os quais uma organização pretende entabular relações, para credibilidade no programa de Compliance, alavancagem ou manutenção de sua boa reputação e consequente garantia da perenidade dos negócios.

Pipocas bem cultivadas, bem embaladas, bem transportadas, estouradas no tempo certo, temperadas na dose certa, dão gostinho de “querer mais”! Programas de compliance bem estruturados, bem monitorados, decorrentes da boa administração e do alto nível de consciência dos gestores, também dão aos consumidores e investidores “gostinho de querer mais”.

Fartemo-nos, pois, de pipocas e de compliance, para a saúde dos nossos organismos, das organizações privadas e públicas, saúde do ambiente concorrencial dos negócios e, em última instância, saúde do planeta!

(*) Compliance Consultant, CPC-A (LEC/FGV)

(1) OLIVA, Milena Donato; SILVA, Rodrigo Guia. Origem e evolução histórica do Compliance no Direito Brasileiro, In: CUEVA, Ricardo Villas Bôas; FRAZÃO, Ana. “Compliance: perspectivas e desafios dos programas de conformidade”. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p.29/51)

(2) Vide Instruções de nº 480, 558/2015 (alterada pela Instrução CVM n.º 593/2017) e 586/2017.

 

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