Protestos interessantes
Não se trata de romantizar o que vem do futebol inglês. Invasão, ainda que não acompanhada de um ataque físico propriamente dito, quase sempre será um erro. Inegável, todavia, que o protesto realizado pela torcida do United no último domingo esparge simbolismo, nos traz incontáveis camadas de significados – e, nesta esteira, vieses intrincados, positivos. Espalha-se em parte da imprensa leituras simplórias da situação; atrelá-la apenas a um resquício de insatisfação quanto à malfadada Supercopa é sucumbir à narrativa da moda; sugerir que os “Diabos Vermelhos” teriam fãs adormecidos caso os resultados em temporadas recentes tivessem agradado revela desconhecimento da cultura local – desmistificar esta parte mostra-se fácil: desde quando a família Glazer assumiu o controle do clube, entre 2003 e 2005, a rejeição materializou-se implacável.
Futebol raiz
Esqueçam o surrado e populista uso desta expressão; na terra da Rainha, mais do que no Brasil, cultiva-se relações com as origens de cada agremiação. Estive em Manchester duas vezes; a segunda, por um período considerável; acompanhar um jogo em Old Trafford, sobretudo na Stretford End – arquibancada atrás de um dos gols que reúne torcedores em geral locais, mais fanáticos; perambular pelos pubs antes e depois dos cotejos, surpreende quem espera comportamentos insípidos típicos de uma modalidade que sucumbiu ao mercantilismo exacerbado. Nos cânticos dos “mancunians”, na aura dos ambientes nos deparamos com o exalar de um orgulho regional.
Maior rival
Qualquer sujeito minimamente iniciado nas questões do ludopédio britânico sabe: o maior rival dos súditos de Alex Ferguson não é o City; quem desperta a ira do lado vermelho de Manchester é o Liverpool. E as canções entoadas pelos nativos deixam isso claro; mas há um detalhe que passa despercebido: mais do que referências ao clube de Merseyside, vocifera-se com ardor contra a cidade vizinha. Nestes instantes, toca-se o intangível; um forte laço com a cultura do lugar onde o time foi criado.
Cultura
Em toda uma série de condutas da torcida do United somos lembrados deste elo da instituição com sua casa; “Manchester é meu paraíso”, lemos numa faixa que se faz presente no Teatro dos Sonhos; outras decretam que ali atua o verdadeiro representante “mancunian”; entre os hinos “não oficiais” dos adeptos em exame destacam-se as canções do Stone Roses – genial banda que, em diversos sentidos, encarna o espírito da cidade (“This is the one” ecoa sempre que os “Red Devils” entram em campo).
Rejeição
A ojeriza aos donos americanos edificou-se, desde o nascedouro da relação, pela intuição de que a amada equipe, a instituição deles, das pessoas de Manchester, ao ser vendida para magnatas despidos de qualquer vínculo com as origens, a história daquele povo, perdeu sentido; identidade. Não importa o dinheiro. Tudo bem que o United, ao contrário de City e Chelsea, não apoiou-se nos novos proprietários para subir de patamar; o clube já era rico. Ainda assim...
Brasil
Até torcedores ferrenhos, no Brasil, costumam bradar reverência por qualquer possível investidor que tornaria o time poderoso.
Moral
E não importa se a origem do dinheiro é suspeita: vide, por exemplo, a cafona idolatria da Fiel por Kia Joorabchian em 2005.