FERNANDO FABBRINI

A embalagem das palavras

Só trocar o recipiente não altera o conteúdo

Por Fernando Fabbrini
Publicado em 23 de novembro de 2023 | 03:00
 
 
 
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Engraçado: agora, nas reportagens da TV ninguém mais morre – “vai a óbito”. Frangos, após engorda nas granjas, também vão a óbito? Atirei o pau no gato, mas o gato não foi a óbito? “Independência ou óbito!” – berrou Dom Pedro?  
 
Após harmonizar rostos, resolveram também remodelar palavras – para confundir, distorcer e, principalmente, enganar. “Democracia”, por exemplo, foi relativizada; esqueçam a velha definição grega. Na Coreia do Norte, na Venezuela, na China e em Cuba a relativização manda, desmanda e ninguém reclama. Até porque o verbo “reclamar” foi apagado há anos das gramáticas de lá. 
 
“Discurso de ódio” é outra refeita. O João agride o Zé com pensamentos, palavras e obras. Um dia, o Zé reage; manda o João para aquele lugar, devolve tudo o que foi obrigado a engolir em silêncio, ofensas, grossuras. Ah, não pode! A justa reação do Zé passa imediatamente à condição de “discurso de ódio”.  
 
Aqueles que compram camisetas do Hamas estão chamando de “holocausto palestino” o contra-ataque de Israel. Exatamente no Dia Internacional contra o Fascismo e Antissemitismo, os neonazistas vermelhos comandaram uma manifestação antissemita em pleno Congresso. Eram poucos e os de sempre, importância zero. Mas valeu para expor ao desprezo público os que apoiam evisceração de mulheres grávidas, decapitações de bebês e outros horrores.  
 
Os substantivos “corrupção”, “ladrão”, “fraude”, “censura” e “ditadura” também se submeteram a cirurgias plásticas para ficarem bonitinhos e elegantes nas postagens e notícias. “Terrorista” em norma culta deve ser atribuída a indivíduos sanguinários de intenções belicosas – porém, atenção: exclusivamente aos de solo pátrio, jamais àqueles de terras distantes. E, assim como “assassino”, o vocábulo “terrorista” está intimamente ligado a outra maquiagem bizarra, a da “justiça”. 
 
Pela nova versão esquisita da “justiça” no Brasil, famílias inofensivas de bonés verde-amarelos são claras ameaças. Idem para senhoras idosas, portando bandeiras ou uma Bíblia. Haverá uma bomba oculta sob a capa? O mastro da bandeira esconderá um míssil de ogiva nuclear? Um desses “terroristas” morreu segunda-feira, no presídio da Papuda. Veremos quais termos maquiados a “justiça” vai inventar para explicar a tragédia. Por outro lado, “assassinos” que esfaqueiam jovens para roubar o celular e tomar uma cervejinha estarão soltos por aí, como sempre.  
 
A mania de retorcer palavras para tirar proveitos é típica da esquerda mundial. Políticos adotaram substantivos e adjetivos “corretos” para alimentar narrativas e dar a elas um toque de modernidade e intelectualidade. Será que funciona?  
 
Na eleição argentina, mesmo com a ajuda de marqueteiros brasileiros enviados a Buenos Aires pela turma do Foro de São Paulo, repetiu-se o erro. O candidato peronista da esquerda manteve as mesmas falas, discursos e clichês de campanha que ninguém aguentava mais – baboseiras populistas e vazias para convencer os eleitores de uma nação com 150% de inflação ao ano e 45% dos habitantes na linha de pobreza; balanço dos governos socialistas.  
 
Já o vencedor Javier Milei, sem papas na língua, disse tudo às claras, direto e reto; apontou falcatruas e denunciou impostores; usou palavras e slogans que o povo entende. “Argentina sem Cristina”, por exemplo, exorcizou a mulher envolvida em escândalos de corrupção, assassinato de um promotor e acobertamento dos responsáveis pelo atentado terrorista à Associação Mutual Israelita. Milei até incluiu – de maneira absolutamente inédita em campanhas políticas – o palavrão “carajo”. Exagero? Não: retratou direitinho o estado de espírito do povo, de saco cheio dos governos anteriores.   
 
Enfim, palavras são apenas embalagens. Podem conter mentiras frágeis ou verdades poderosas.

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