FERNANDO FABBRINI

Pintos no lixo

E tem gente que gosta


Publicado em 22 de outubro de 2020 | 03:00
 
 
 
normal

Num de seus filmes mais engraçados e provocadores, Woody Allen criou um personagem através do qual conseguiu externar com muito humor seus típicos desencantos existenciais.

Trata-se de Boris, um professor de mecânica quântica, meio gênio, irônico ao extremo, cuja inteligência é proporcional à má vontade com os costumes, as fraquezas, os sonhos e as esperanças do homem moderno. Numa das cenas, ponderando com uma mocinha sobre sua visão particular da fracassada humanidade, Boris cita um exemplo banal:

- Você sabe por que foram inventadas as descargas automáticas dos vasos sanitários dos banheiros públicos? Diante da negativa de sua interlocutora, Boris foi direto à jugular do homo sapiens:

- Porque não se pode contar com as pessoas nem para darem descarga nas privadas! Fazem e vão embora! Não pensam nos seus semelhantes! Ou seja: não estão aí nem para a própria merda!

Basta ampliar a filosofada de Boris até o espaço urbano para dar plena razão à sua observação escatológica. Ah, o lixo, os dejetos, as sobras! A cada dia é maior a irresponsabilidade dos moradores que despejam de tudo nas calçadas, como se elas fossem vasos sanitários – e não dão descarga.

Com a pandemia e o isolamento, além do lixo tradicional, as ruas ganharam novos restos desses tempos: máscaras usadas, luvas e milhares de embalagens de isopor trazidas pelos motoboys. Os cidadãos não só já se acostumaram com a porcaria onipresente como contribuem, generosamente, com suas cotas diárias.

Incomodado e tentando fazer a minha parte, fotografei bueiros entupidos, montes de lixo, sarjetas imundas e enviei as imagens a uma amiga que tem proximidade com a administração municipal. De fato, funcionou: já vi algumas equipes limpando os locais indicados. Porém, acho que deveriam dar mais atenção ainda à limpeza nesse período anterior às chuvas fortes e não dependerem de um cidadão comum para os alertas.

No planejamento da varrição urbana há coisas que escapam à lógica. Por exemplo: a rua do Ouro, onde moro, é varrida dia-sim-dia-não, segundo me informaram. No entanto, muitas ruas da Serra que nela desembocam só são varridas a cada quinze dias (ou mais que isso, ando checando). Muito esquisito. Seria como cuidar de um rio maior e esquecer de seus afluentes. Desse jeito, ratos, baratas e escorpiões não se preocupam. Após a passagem dos varredores pela rua, basta uma corridinha de alguns metros em direção às ruas transversais para sentirem-se novamente em casa. Bate uma chuva e a porcariada desce nas enxurradas, fácil.

O lixo urbano obedece a um critério acumulativo curioso. Faça sua própria pesquisa: jogue um inocente copinho plástico no canteiro qualquer. Daí a pouco um sujeito depositará um marmitex com sobras de feijão. Uma senhora, de passagem, deixará cair no local uma fralda descartável cheia de cocô. Em seguida, virão sapatos velhos, bandejinhas de isopor, cascas de mexerica e restos de melancia. Pronto: acaba de nascer mais um depósito a céu aberto, inocentemente iniciado com um copinho.

Suspeito que há coisa mais séria por trás do lixo complacente. Se o povo aceita a sujeira das ruas como “normal”, ou “no Brasil é assim mesmo”, com toda certeza aceitará também, no seu íntimo, outras sujeiras contemporâneas – a violência, o crime, o descaso, a roubalheira dos políticos, o preconceito e tudo mais.

Infelizmente, para muita gente, é melhor que seja assim. Imersos na sujeira explícita e na sutil, desfrutam das vantagens desse habitat, felizes como pintos no lixo.

Notícias exclusivas e ilimitadas

O TEMPO reforça o compromisso com o jornalismo profissional e de qualidade.

Nossa redação produz diariamente informação responsável e que você pode confiar. Fique bem informado!