Alessandra, uma amiga italiana, conheceu o marido norte-americano – um jovem cineasta – quando ele produzia um documentário na região da Úmbria. Professora de línguas, foi contratada pela equipe como intérprete. Uma filmagem aqui, outra ali, umas taças de vinho, rolou um clima. Hoje estão casados. Ela continua dando aulas para estrangeiros, além dedicar-se a um belo trabalho voluntário com refugiados. Ele vive correndo de um lugar para outro, filmando.
Em fevereiro, um fim de semana de folga: embarcaram em Roma para visitar os sogros que moram em Amytiville, arredores de Nova York. Má ideia: atingidos pela pandemia, com pouca roupa na mala e mil contratempos, até ontem buscavam um jeito de voltar para casa, sem chances.
Ela e eu - em distanciamento social e geográfico – vez ou outra fazemos “lives” no Whatsapp. Ontem, chamou-me à tarde. Porém, seu jeito normalmente alegre não era o mesmo. Tinha olheiras da noite mal dormida; visivelmente abatida. Reproduzo a seguir parte de nossa conversa, unicamente suprimindo os frequentes palavrões que Alessandra, na qualidade de boa e brava calabresa, não economiza.
“Fui a Nova York com o Jimmy; a ideia era passar em Little Italy e comprar alguns ingredientes, variando dessa (palavrão) que sou obrigada a engolir aqui. Imagine se (palavrão) de lasanha congelada é comida para nós? De máscaras, sacolas nas mãos, chegamos à estação de metrô, mas fomos envolvidos pela manifestação”.
“Jimmy puxou a câmera da mochila e começou a filmar, ele gosta. De repente, um grupo armado com tacos de beisebol e correntes apareceu, berrando ‘what the fuck are you whites doing here?’ Jimmy, calmamente e em bom inglês, tentou explicar, mas levou um safanão. A câmera voou longe. Fugimos, apavorados. A multidão cresceu, fomos empurrados até um beco que, por sorte, serviu de abrigo naquela (palavrão) hora”.
“Com a câmera meio escondida no agasalho, Jimmy continuou filmando. Do outro lado da avenida tinha uma loja de esportes. Os (palavrão) caras estraçalharam as vitrines, atirando latas de lixo, pedras e toda a (palavrão) que encontravam. Aí, invadiram, gritando. De lá saíam com caixas de tênis, agasalhos, luvas de beisebol, toda a (palavrão). E riam, riam muito; gritavam e disputavam o roubo uns com os outros.”
“Em menos de uma hora – tempo que ficamos ali no beco – todas as lojas da avenida tinham sido quebradas e invadidas. Vimos um Audi incendiado e muitos carros arrebentados. O grupo (palavrão) com tacos de beisebol retornou e cercou um casal de idosos que estacionava uma van; quebraram o para-brisas; dois pulavam no teto, gritando (palavrão). O velhinho, apavorado, suplicava ‘oh my God, please!’; tentava se defender com a bengala e protegia a esposa com o corpo; ela já se ferira no rosto com cacos de vidro”.
“Esse pessoal fala que é contra o consumo, grifes, essa (palavrão) toda. Mas só roubaram artigos de luxo; coisas baratas ficavam por lá. Duas garotas passaram por nós, mãos cheias de relógios, celulares e óculos de marcas famosas”.
Apenas escutei, calado, o que Alessandra dizia. Vários vídeos circularam na internet mostrando também o horror, a selvageria, o banditismo que extrapolou os limites daquele que seria um justo protesto do assassinato de George Floyd pela polícia de Minneapolis.
Alessandra e Jimmy, bem jovens, fazem o típico casal politizado do momento. Socialistas intransigentes, odeiam Trump; lutam contra o racismo; militam em favor das questões ambientais, minorias e outras causas da época. A última frase dela, indignada, fez-me descrever aqui o acontecido em Manhattan pela ótica de uma testemunha que viu e sentiu o terror de perto:
- Que (palavrão) essa (palavrão) de humanidade está virando? – disse Alessandra, ao final.
Também procuro entender, sem resposta ainda.