Somos especialistas nos defeitos alheios. Sabemos pontuar com exatidão as partes menos lapidadas daqueles que nos cercam. Somos precisos na percepção e profundos na elaboração das sombras dos outros.
E por quê?
Quando focamos as imperfeições do resto do mundo, evitamos o encontro com as nossas. É bem mais cômodo apontar dedos do que investigar a verdade sobre nós. E é por isso que ainda insistimos em projetar nos outros a responsabilidade pelos nossos incômodos.
A primeira coisa que fazemos quando estamos diante de um conflito é pontuar o que a outra pessoa poderia ter feito melhor. E a segunda é elaborar a história de uma forma que reafirme a necessidade do outro de ser e agir diferente.
Gastamos muita energia para convencer pessoas a atuar da maneira que consideramos ser certa. Criamos esperança de que é possível mudar a parte do outro que nos tira do sério. Rezamos incansavelmente para que aqueles que nos cercam não esbarrem nos botões que ativam nossos desconfortos. Quando, na verdade, o que deveríamos fazer é nos perguntar por que deixamos nossos botões à mostra.
Nós damos às pessoas o poder de nos desestruturar porque não compreendemos que quem deve gerir nossas emoções somos nós mesmos. Preferimos torcer pelo “bom” comportamento alheio a aprender como transformar a parte de nós que se incomoda com o outro. E, assim, nos tornamos dependentes.
Se a nossa paz depende da harmonia dos contextos que nos cercam, não é paz – é controle.
Ninguém bagunça a nossa casa se não entregarmos as chaves. Por que, então, insistimos em atribuir ao outro a responsabilidade pela nossa desordem? Há uma parte de nós que ainda prefere se acomodar na ilusão de que as pessoas deveriam agir de acordo com as nossas verdades e que ignora a possibilidade de que cada um carrega uma bagagem.
O problema é que, ao entregarmos as chaves da nossa felicidade nas mãos de outras pessoas, nos tornamos reféns. Se precisamos que elas mudem para que a nossa vida esteja em paz, estaremos sempre contando com a sorte. Não seria mais inteligente observar qual parte de nós se incomoda com os desajustes alheios?
Pessoas funcionam como gatilhos que despertam nossas sombras. As sombras dos outros esbarram nas nossas e acordam nossos monstros adormecidos. Se optamos por culpar o outro e fazer o monstro voltar a dormir, teremos sempre cenários repetidos, porque, afinal, se a fera continua viva, na próxima vez que alguém esbarrar no despertador, ela vai acordar.
Melhor, então, conhecermos os fantasmas que carregamos do lado de dentro para que possamos acender nossa luzinha interna e impedir que voltem a cochilar. Melhor nos empenharmos na cura das nossas feridas abertas do que culpar aqueles que as cutucaram.
Contabilizar defeitos alheios nos mantém estagnados, sem corrigir os nossos. Focar as falhas alheias é, no fundo, estratégia para nos distrair das nossas.
Inevitavelmente, os personagens que nos cercam vão fazer barulho e vão trazer nossa turma do terror à tona. Mais eficiente, portanto, cuidar da parte de nós que vive se incomodando com tudo e todos.
Nenhuma ferramenta é tão eficiente para o nosso crescimento quanto o hábito de nos perguntarmos qual parte de nós se incomoda com os outros. Isso não elimina a existência de distorções nas ações das pessoas, mas certamente nos protege do risco de perder a oportunidade de observar qual sombra nossa foi despertada. Afinal, só é possível iluminar uma sombra quando tomamos consciência dela.
Que saibamos, da próxima vez que alguém nos roubar a paz, observar quais dos nossos botões estavam à mostra e foram ativados. Quais monstros adormecidos acordaram. E em qual momento entregamos as chaves da nossa casa em mãos alheias.
É melhor levar luz à parte de nós que se incomoda com a chuva, consertar as goteiras do telhado e preparar a lista da Netflix do que rezar para que os dias sejam sempre ensolarados.