No mato, quando deixava a lida diária, à tardinha, um caipira cultivava hábito de fazer bem. Tinha um cupinzeiro antigo, há muito sem insetos, na beira do rio. Lá, rente ao leito, só uns dez metros. O caipira se largava da bota e apeava no cupinzeiro para admirar a corrida do rio. Era só ele e o rio, criação de Deus, e tudo o mais atrás.
Pensava consigo o matuto que não podia haver no mundo rio mais bonito que o “dele”, aquele caudaloso, urgente, que se insinuava ligeiro por detrás da roça “dele”, e que nenhum outro rio poderia fazer tão bem às vistas do coração “dele” do que aquele.
Não sabia o homem que a poucas largas dali, depois do morro, outro que nem ele cultivava igual costume. Um vaqueiro subia num cupinzeiro velho para admirar a natureza divina resumida no rio. Mas esse de costume matinal: antes de ter com as crias do patrão, lida pesada, o outro matuto se dirigia para a barranca, depois do desjejum. No alto do morro, apeado no cupim, se vidrava no rio, lá embaixo, mais largo e sereno. Era como que pedindo força àquele ente manso e portentoso antes de seguir ao curral.
Pensava o vaqueiro que nada podia fazer melhor pra ele nas preparações do trabalho duro do que aqueles momentos de contemplar o rio “dele”, cuja passagem asserenava o ar ao redor das vacas e cavalos sob a tutela “dele”. Não, julgava ele, não havia rio mais bonito do que o “dele”.
O agricultor não conhecia o vaqueiro. Apesar de morarem na mesma região e de vivenciarem o mesmo rio, viviam longe, entre matos, morros e rotinas. Imagine se nessas picadas de caminho, num balcão de venda, no meio da feira ou na porta da igreja, se trombassem. Um contaria do rio que vive, com amor nos olhos e mel na língua. O outro, para si, faria o mesmo sobre o rio “dele”, uma descrição decorada. Provável que se desse um duelo narrativo: “meu rio é o melhor por que me deixa assim...” contra “besteira, meu rio é que é o melhor porque me faz assado...”. Não chegariam a nada. E o fel amargaria as palavras.
Não se dariam conta, cegos e mudos, um e outro, de que falavam do mesmo rio em pontos e condições diferentes, cada um de cima do seu próprio cupinzeiro, um ali, junto ao leito, o outro, no alto do morro. Pareciam mesmo dois rios, mas não, era o mesmo. O um que sarava as vistas e acalentava a alma de ambos, de tantos.
Acontece que, o bom seria, se um soubesse da vista do outro, e o outro, da vista do um. Saber que o outro olha o rio do um e vice-versa, mas diferentemente, cada um no seu cupim. Também, certo seria se o outro considerasse com respeito o quadro de vista do um como sendo o rio que esse bebe com os olhos. Bonito seria se pensar: “O meu rio, pelo que vejo, é para mim o mais bonito. Mas o outro, que vê outro rio, apesar de o mesmo, gosta mesmo é daquele lá”. Ficariam todos bem, guardando sua porção de beleza que o mesmo rio oferece, embora sabendo de outras belezas que outros cupinzeiros favorecem.
Andamos tratando a política como matutos ensimesmados, encarrapichados no próprio cupim, sob o transe do “meu rio”: “ninguém nunca pensou no que há para além do rio do minha aldeia”.
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