Kênio Pereira* e Luiza Ivanenko**
(*)Advogado, consultor especial da presidência da OAB-MG
(**)Advogada da Kênio Pereira Advogados
É inegável que os Juizados Especiais foram criados para facilitar o acesso à Justiça e assegurar celeridade à solução de litígios de menor complexidade. No entanto, o que se observa na prática é o desrespeito às garantias processuais sob o pretexto de simplificação.
Em caso ocorrido em junho deste ano, verificou-se desprezo à legalidade e à segurança jurídica. Embora já formada a relação processual e apresentada a contestação, durante a audiência de instrução e julgamento, com as testemunhas do réu presentes, o autor, por não cumprir sua obrigação legal de levar suas testemunhas, surpreendeu ao requerer a desistência da ação. A advogada do réu, de forma respeitosa e fundamentada, alertou o juízo de que, nos termos do artigo 485, § 4º do Código de Processo Civil (CPC), tal desistência somente poderia ser acolhida com a anuência da parte contrária, especialmente por ter ficado evidente que a ação seria julgada improcedente, tendo o juiz indeferido o pedido de autor de fazer outra audiência.
Juiz cria lei e faz o que bem entende
Ainda assim, o juiz da causa, ignorando o texto expresso do CPC, deferiu a desistência afirmando que a “Lei do Juizado” o autorizaria a tanto e ignorando que sua decisão não se apoiava em norma legal, mas em enunciado do Fonaje que, embora seja órgão consultivo, não detém competência normativa.
Mais grave, contudo, foi a indiferença do magistrado diante do novo alerta feito pela defesa no sentido de que fomentaria a reiteração da demanda, com o agravante de o autor, agora ciente das teses defensivas e das provas arroladas, poder ajustar sua nova narrativa com vistas a burlar o contraditório e a ampla defesa. O aviso foi ignorado com gritos para constranger e silenciar a advogada do réu.
Diante disso, foi flagrante a quebra da hierarquia normativa, fundamento basilar do Estado democrático de direito, em nome de informalidade disfuncional a partir do momento em que se privilegia um enunciado em detrimento da lei.
E o alerta se confirmou: em menos de uma semana após a fatídica audiência, o autor propôs nova ação, com os mesmos fundamentos e pedidos.
Com isso, o Juizado, já sobrecarregado, suportará novamente os custos com citação, audiência e reiteração de atos que haviam sido praticados no feito anterior, comprometendo a celeridade e a economia processual. A situação revela a naturalização da litigância predatória tantas vezes coibida pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), mas que parece encontrar aceitação no Juizado Especial de Belo Horizonte.
A informalidade e a simplicidade dos juizados não autorizam o desprezo às garantias fundamentais do processo. Ao contrário, tais princípios deveriam coexistir com o respeito à legalidade e ao devido processo legal. O caso narrado expõe insegurança jurídica, além de comprometer a racionalidade e a credibilidade do sistema.
Muitos advogados têm evitado o Juizado diante do desrespeito às leis. É urgente resgatar o verdadeiro sentido da Lei 9.099/1995, restabelecendo o equilíbrio entre celeridade e legalidade, simplicidade e segurança jurídica. Afinal, não há justiça onde a legislação é relativizada por enunciados e juízes se tornam legisladores.