Guillermo Pérez/Latinoamérica21
Os resultados eleitorais da Bolívia, além das interpretações triunfalistas ou fatalistas de cada lado do espectro ideológico, constituem, primeiro, um sinal de que as instituições liberais do país andino ainda gozam de boa saúde e, segundo, que a economia tem um impacto tremendo na configuração política do país.
Em uma espécie de segunda oportunidade para a elite política tradicional boliviana, um ex-presidente (Jorge Quiroga) e o filho de um ex-presidente (Rodrigo Paz) disputam o segundo turno na Bolívia. Independentemente de quem vença, o que definirá o futuro político do país é como a elite política boliviana conseguirá resolver os profundos problemas na área econômica e gerar crescimento e inclusão social.
Esses problemas não são novos. A Bolívia é considerada um dos países mais pobres e politicamente instáveis da América Latina. Segundo os dados registrados pelo Cline Center for Advanced Social Research da Universidade de Illinois, a Bolívia tem o duvidoso privilégio de ser o país com mais golpes de Estado da região, com mais de 40 desde o ano de 1947 (somando os fracassados e os exitosos). Individualmente, supera qualquer país africano nessa categoria.
Articulação tripartite
Durante os anos 80 e 90, após o fim de um período conturbado marcado por ditaduras militares tanto de direita quanto de esquerda e uma crise econômica, incluindo hiperinflação, gestada no governo de esquerda da Unidade Democrática e Popular (UDP), o sistema político se articulou em torno de três partidos: o Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR), a Ação Democrática Nacionalista (ADN, de orientação conservadora) e o Movimento da Esquerda Revolucionária (MIR).
Durante esse período, nenhum deles conseguiu obter maioria absoluta — oscilaram entre 20% e 30% das preferências eleitorais —, pelo que as alianças parlamentares eram indispensáveis para governar.
Evo Morales
No entanto, os maus resultados das políticas de privatização no final dos anos 90 e início dos anos 2000 corroeram esses modestos avanços na estabilidade política. Isso favoreceu a ascensão de Evo Morales, líder sindical cocalero, que soube canalizar o voto de protesto e a frustração com a elite política tradicional com seu partido político Movimento ao Socialismo (MAS).
A vitória de Morales, com mais de 50% dos votos em 2005, foi surpreendente e representou a mais contundente da história política recente do país. Ademais, sua legitimidade permitiu-lhe impulsionar a convocação de uma Assembleia Constituinte em 2009 e transformar o Estado boliviano, que passou a se chamar Plurinacional, em um contexto que era especialmente favorável devido ao boom das commodities impulsionado pela alta demanda chinesa.
As reformas ampliaram a representação indígena e estenderam o poder presidencial. O sistema judicial superior passou a ser escolhido por voto popular. Durante esse período, a hegemonia de Morales foi total, e muitos politólogos classificaram seu regime como uma forma de autocracia eleitoral ou autoritarismo competitivo.
Referendo
No entanto, o limite à reeleição indefinida acabou sendo um obstáculo importante, que nos lembra a importância das instituições e sua capacidade de moldar o comportamento político.
Morales tentou superar essa barreira com um referendo em 2016, no qual sua tentativa de se habilitar foi rejeitada, mas depois o Tribunal Constitucional avalizou sua candidatura, o que foi amplamente questionado.
A crise que tirou Morales do poder teve origem durante a contagem dos resultados nas eleições de 2019. Após uma campanha complicada, quando os primeiros boletins apontavam para um segundo turno inédito, a publicação da contagem preliminar foi interrompida inesperadamente. Quando foi retomada, Morales apareceu como vencedor no primeiro turno, o que gerou acusações de fraude.
Um relatório da Organização dos Estados Americanos indicou irregularidades significativas, o que desencadeou uma crise política que culminou em sua renúncia, apoiada por altos comandos militares.
Sombra
O MAS parecia deslegitimado, mas a má gestão da presidente interina, Jeanine Áñez, e a crise econômica da pandemia lhe deram nova vida. Morales, impedido legalmente de concorrer, conseguiu apoiar a candidatura de seu ministro da Economia, Luis Arce, eleito em 2020.
No entanto, a sombra de Morales permaneceu. Sua ambição de retornar ao centro político o levou a entrar em conflito tanto com Arce quanto com o resto de seu partido político, o MAS, do qual ele finalmente renunciou em fevereiro deste ano, após incentivar protestos contra o governo e até mesmo fazer ameaças veladas de uma possível guerra civil.
A fundação do novo partido, Evo es Pueblo, mostrou a dimensão do caráter personalista e caudilhesco de Morales, apesar de seu ex-vice-presidente, Álvaro García Linera, sempre ter tentado vendê-lo como um representante dos movimentos sociais e indigenistas que governava sob a premissa de “governar obedecendo”.
Futuro em construção
Durante o governo de Luis Arce, a crise econômica se agravou: inflação entre 20% e 25%, escassez de combustível e dólares, reservas internacionais quase esgotadas e déficit fiscal próximo a 11% do PIB. A produção de hidrocarbonetos caiu drasticamente e a Bolívia, apesar de ser um importante exportador de gás, começou a depender cada vez mais das importações. Nesse contexto, em junho de 2024, houve uma tentativa frustrada de golpe por parte do general Zúñiga.
Finalmente, a crise econômica e política destruiu a hegemonia de 20 anos do MAS. Seu colapso foi monumental: seu candidato obteve apenas cerca de 3% dos votos e desapareceu do Senado. Por outro lado, os votos nulos chegaram a cerca de 18%, um recorde impulsionado pelo apelo de Morales. Foi convocado um segundo turno para outubro, algo inédito desde a instauração da democracia na Bolívia.
O futuro político do país andino ainda está por ser definido nessas futuras eleições, mas há duas questões decisivas. Em primeiro lugar, se o novo governo será capaz de reordenar a economia e reativar o crescimento sem provocar tensões sociais desestabilizadoras. Em segundo lugar, qual será o papel de Evo Morales, que com seu novo partido poderia tentar recuperar protagonismo articulando, como no passado, a mobilização social disruptiva com a participação eleitoral.
Será crucial que a elite política boliviana consiga superar interesses de curto prazo para garantir o futuro do país.
(*) Guillermo Pérez é sociólogo pela Universidade Central da Venezuela. É especialista em Políticas Públicas para a Igualdade pelo CLACSO. É mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Santa Maria (Brasil).
Tradução automática revisada por Isabel Lima