A única filha entre três homens, meus pais se mudaram para a Pampulha, em um grande terreno de 70 mil metros quadrados. Naquela época as dificuldades eram tremendas. O ônibus mais próximo passava às margens da lagoa. Linha telefônica simplesmente não existia. Farmácias, padarias e mercearias eram sonhos distantes.
Apesar de tudo, souberam superar com maestria os obstáculos do local que escolheram para criar seus filhos. E duvido que existisse lugar melhor para o desenvolvimento de uma criança. Digo isso com certeza, porque foi nesse local, na época desprovido de confortos maiores, mas repleto de liberdade e beleza, que eu nasci e me criei.
Meus pais foram tachados de loucos e irresponsáveis: como tinham coragem de criar quatro crianças naquele fim de mundo? E quando adoeciam? Nem médico chegava. Como explicar um endereço quase no meio do mato? E as cobras? Os escorpiões?
Talvez tudo isso esteja distante da compreensão de minhas filhas, nascidas na era dos computadores, das curtas distâncias entre um local e outro, dos telefones celulares, dos prédios invadindo o que outrora fora a nossa bucólica Pampulha e tantas, tantas coisas mais. Talvez não compreendam a importância do primeiro telefone instalado na região por seus avós, único meio de comunicação com a cidade urbanizada.
Gente humilde, caseiros de fazendas vizinhas vinham, às vezes tarde da noite, em busca de socorro, em busca daquele único telefone, cuja linha fora puxada a 6 km de distância. Também da primeira linha de ônibus, conseguida por meus pais. As pessoas lhes eram gratas, principalmente a minha mãe, que sempre os recebia com sorrisos, cafezinhos e biscoitos. Pobres moradores da Vila Recreio, pequena comunidade esquecida naquele canto perdido da região da Pampulha.
E assim, com o empenho e a perseverança de meu pai, jovem advogado e dinâmico empreendedor, o local foi aos poucos se ajeitando, perdendo os ares de “fim de mundo”, como dizia a família, horrorizada.
Naquela época, tínhamos como vizinho o Lar dos Meninos Dom Orione, ou pelo menos a semente da instituição que é hoje. O padre Dino, por quem tínhamos enorme apreço e admiração, já era o carro propulsor da entidade, incansável em sua luta pela causa dos menores.
Minha mãe fazia trocas incríveis com os simpáticos vizinhos. Mangas por abacates, taiobas por couves e outros alimentos que cultivávamos em nossas hortas.
Às vezes, surgiam probleminhas, como o cabrito esfomeado que cismava de invadir a horta vizinha. O bicho era um caso sério, e medidas mais drásticas tiveram de ser tomadas a partir do dia em que voltou a nossa casa com a boca amarrada com um pedaço de corda. Única maneira encontrada pelos seminaristas para dar um basta a suas investidas gastronômicas.
Certa vez, nossa floresta de eucaliptos pegou fogo, pondo em risco a marcenaria de meu pai. Bombeiro ali, ainda mais no domingo, era quase impossível. E foi nessa hora que apareceu a mão amiga do padre Dino. Montado num caminhão, chegou acompanhado de uns cem meninos, que, munidos de enxadas e galhos de árvores, começaram a apagar o fogo. Se não fossem o padre Dino e seus meninos, Deus sabe o que seria de meu pai com sua marcenaria, que tão logo se transformaria na primeira fábrica Campolar de Casas Pré-Fabricadas.
Geralmente em agosto a “floresta” ardia em chamas. Me impressionavam as queimadas, principalmente quando os bombeiros chegavam derramando água no fogaréu. E também ao escutar os gritos de “cobra, cobra!”, que a todo momento saíam desnorteadas do matagal. Que emoção era tudo aquilo aos olhos de uma menina!
Além da floresta, existia em nossa casa uma pedreira. No momento das explosões, uma sirene tocava como alarme. Era a hora de “guardar os meninos”.
Ao lado da pedreira havia montanhas de pó de pedra, e não demorou muito para descobrirmos uma utilidade para elas. Naquela época, bacias e baldes eram feitos de alumínio. Para não queimar o traseiro, colocávamos toalhas dentro das bacias e descíamos as montanhas a 200 km/h. Minha mãe enlouquecia; primeiro, com o perigo da brincadeira, depois, com a destruição de bacias – quase uma por semana.
Das fendas, às vezes brotava água de cor e cheiro duvidosos e um sabor ainda mais estranho. E, para completar os encantos da pedreira, descobrimos ali uma raposa, que fez de um buraco na rocha sua morada. Munidos de lanternas, saíamos em busca da “fera”. A emoção misturada ao medo trazia-me sensações intensas que jamais esquecerei. Como nunca esquecerei tudo aquilo que vivi e presenciei com meus olhos de menina.