Nada mais surreal que o papo entre aqueles dois: a vítima, Carol, que teve seu telefone roubado num bar, e o ladrão. A coisa foi mais ou menos assim:
“Quem está falando?”, pergunta a moça, ansiosa, ao ligar para o seu próprio número. E, do outro lado da linha, escuta: “É o ladrão!” Isso mesmo, com toda pompa, circunstância e extrema cara de pau. Pega de surpresa, ela descarrega impropérios: “Seu desclassificado, gatuno, amigo do alheio...” O ladrão ameaça desligar quando é interrompido novamente. “Não desliga, não, pelo amooor de Deus!”
Ela conta das prestações que pagou com dificuldade, da agenda repleta de nomes e das fotos registradas no aparelho. Receia perdê-las, principalmente a de um tal João, que conheceu sabe-se lá onde e que, por ironia do destino, ficou de lhe telefonar. O problema é que o celular já não estava em suas mãos, e, se ele ligasse, quem atenderia? Ou sequer atenderia? O ladrão!
Sem ter muito o que fazer, explicou o drama ao sujeito, que acabou se prontificando a colaborar: se o fulano ligasse, ele lhe passaria o número da casa dela (registrado no aparelho). Papo vai, papo vem, acabaram criando certa cumplicidade.
No dia seguinte, ela volta a ligar, ansiosa:
– E aí? O João ligou? Deixou alguma outra mensagem?
– Putz grila, Carol! Não ligou, não deixou mensagem... Vamos combinar uma coisa? Se o cara der sinal de vida, eu aviso, ok? Agora, se me dá licença, estou na linha com outra pessoa.
– Como se atreve a mandar eu desligar o MEU celular? E com quem está falando aí? E se você for um bandido usando o meu número? Fazendo transações ilícitas com meu telefone? E se estiver fazendo ligações interurbanas? Não tenho grana, não, viu? Já vou avisando que estou dura. E que essa conta não será paga NUNCA! Eu só não mando cancelar essa m.... por causa do telefonema que estou aguardando, senão...
– Acabou? Agora me dá licença...
Dois minutos depois...
– Carol? Sou eu. O ladrão.
– Essa voz rouca e safada eu reconheceria até na lua. O que é agora? Vai me dizer que o João ligou nesse meio-tempo?
– Não. Eu só queria lhe dizer que você está fazendo mau juízo da minha pessoa. Não sou o que está pensando. Não faço parte do PCC nem fico fazendo interurbanos. Como você, estou atravessando uma fase difícil, só isso. Desempregado e duro, me entende? Foi por isso que fiz essa besteira.
– Qual besteira?
– A de pegar seu celular. Foi uma fraqueza, uma burrada sem explicação. O aparelho estava ali na mesa... O meu tinha sido roubado, e eu precisei de outro com certa urgência. Como que eu iria me apresentar à garota com quem estou saindo sem um celular? Se ela percebesse que, além de desempregado, eu sou um pé-rapado, você acha que se interessaria por mim? Seja sincera.
– Ai, meu Deus! Isso não está acontecendo...
– Ricardo.
– Como?
– Meu nome é Ricardo, e eu gostaria que soubesse. Sou técnico em informática. A firma em que trabalhava quebrou, sequer recebi os atrasados. Meu pai adoeceu, minha mãe é costureira e, sozinha, mal dá conta de manter a casa. Tentei de tudo, só faltava mandar currículo pra lua. Minha área está saturada. Topo qualquer parada, comigo não tem disso, não. Eu gostaria que soubesse.
– Bom, eu... eu... Pô, Ricardo! E você acha que para segurar a garota você tem que ter um celular? Já começar o relacionamento em cima de mentiras? Se ela não te aceita do jeito que é, é porque não te merece!
– Eu sei, foi besteira da minha parte... Carol?
– Hum...
– Quero te devolver logo esse aparelho. Onde posso levá-lo?
– Uau! Não acredito... Podemos nos encontrar no shopping? Não, na verdade, não. Preferiria que você não visse nunca a minha cara.
– Mas eu já vi! Lembra-se do comentário que fiz sobre sua foto? Você é bonita, tem um olhar expressivo. Na verdade, Carol, você é linda, e esse João é um idiota por não querer estar com você.
Conversa vai, conversa vem, marcam de se encontrar. No início ela estava temerosa. Expor-se assim a um ladrão de celulares não era uma boa, mas fazer o quê? Precisava do aparelho e, além disso, ele já a conhecia por fotos, sabia o telefone de sua casa, o telefone de seus amigos, o nome de sua médica e, pior, parte de seus segredos.
– Tudo bem. Na frente do McDonald’s. Mas tem uma coisa...
– O quê?
– Você vai me devolver o celular e sumir do mapa. Não quero te ver nunca mais, está me ouvindo? Seu, seu...
– Ladrão, amigo do alheio, safado.... Você já me chamou de tudo isso inúmeras vezes. Fica tranquila, não irei incomodá-la.
No caminho, deu aquela tremedeira. E se ele fosse perigoso? Um mau-caráter, traficante, sei lá, um, um...
– Carol? – chama uma voz rouca às suas costas.
– Ricardo?
– Eu mesmo, tudo bem?
– Como é que você me encontrou aqui? – pergunta, desconfiada.
– Uai! Estamos a dez metros do McDonald’s. Não foi lá que marcamos de nos encontrar?
– Ah! É... é que... nossa! Eu te imaginava bem diferente...
– Pra pior ou pra melhor?
– Para ser sincera, pra... Escuta, me dê logo o celular. Espero que não tenha estourado a conta.
– Eu devolvo, mas com uma condição. Está pintando um emprego, e assim que puder, eu pago tudo, ok?
– Não precisa. Eu dou meu jeito.
– Faço questão, é a única forma de corrigir meu erro.
– Quer dizer que conseguiu trabalho? Você é técnico em informática, não é isso?
– Exatamente. Custou, mas valeu a pena, a empresa é bem sólida, estou superesperançoso.
– Ah, sei. E o celular? Está aí?
– Claro! Cuidei dele direitinho. E como você me pediu, na verdade implorou, eu não deletei o João. – E quase que para si mesmo: – Aquele idiota...
– Como?
– Nada. Esquece!
– Você está me escondendo alguma coisa? Ele ligou, e você não quer me falar, é isso?
– Está louca, menina? Você me ligou trocentas vezes perguntando a mesma coisa, se o João ligou, se o João mandou alguma mensagem, se o João mandou um torpedo, e você acha que eu teria coragem de mentir para você? Carol, já lhe disse que não sou nada do que está pensando.
– Desculpa, é que...
– Quer saber? Esse João é um idiota, e você também, de ficar correndo atrás. Homem não gosta de mulher no pé. Já lhe disse isso uma vez, está lembrada? Toma seu celular, e quando ele te ligar, se é que vai ligar, vá atrás. Depois não me venha reclamar que o cara sumiu de novo. Um cara assim não te merece.
– Para que essa grosseria agora? Você não me conhece! E não passa de um... um...
– Não precisa repetir. E por que, em vez de ficarmos aqui discutindo, não nos sentamos e conversamos de maneira civilizada?
– Nem te conheço!
– Tudo bem. É assim? Então, tchau.
– Ei, Ricardo!
– O quê?
– Bom, já que estamos aqui...
À noite, sozinha em seu quarto, Carolina recapitula o seu dia, desde o momento em que uma voz rouca a chamou pelo nome. A mesma que lhe confessou fraquezas e a alertou nas suas atitudes. E não compreende a emoção que lhe transborda. Ainda no celular, resquícios de um perfume masculino. Segura-o com carinho e, conscientemente, deleta o João.