Laura Medioli

Laura Medioli

Laura Medioli é escritora e presidente da Sempre Editora, responsável pela publicação dos jornais Super, O TEMPO e O Tempo Betim, além da rádio FM O TEMPO e do portal O TEMPO. Formada em estudos sociais, Laura já atuou como professora e se dedica de forma intensa hoje à causa da proteção animal.

LAURA MEDIOLI

Nas ondas da vida

Bom mesmo era o rádio. Presente no quarto, na cozinha, na hora do banho e em infindáveis madrugadas de insônia

Por Laura Medioli
Publicado em 03 de fevereiro de 2019 | 04:30
 
 
 
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Na solidão do quarto, liga o rádio para que vozes e músicas preencham sua noite de silêncio. Qualquer coisa que a distraia. E pensa nos filhos crescidos, que já não dependem mais dela. Às vezes, alguns telefonemas e visitas nos fins de semana – nem sempre. O dinheiro depositado na conta para pagar despesas. Nada poderia lhe faltar. Pensam inclusive em arrumar-lhe uma companhia, uma senhora com quem pudesse conversar e ajudá-la nos afazeres da casa.

O problema não era a velhice – era relativamente nova – e, como dizia a neta, “ainda tem muito chão...”. O problema era a cabeça, a falta de vontade, o deixar-se ficar, arrastando-se pela vida, como se mais nada tivesse a cumprir.

As coisas do dia a dia, a novela das seis, a comida leve e frugal, as gavetas arrumadas sistematicamente com suas caixinhas de joias e bijuterias, linhas e botões. A caixa das cartas, dos poemas que gostava de escrever. E os lia com um aperto no peito, aquela dor remexida na alma. Fecha o armário, gavetas trancadas. Pra que voltar atrás, entristecer-se com o que não tinha retorno? Pra quê?

E dorme com o rádio ligado num noticiário qualquer. As notícias não mudam: corrupção, assaltos, desgraças, só isso. No dia seguinte, a oração da manhã, trazendo-lhe um pouco de conforto. Levanta-se para recomeçar em “câmera lenta” a sua rotina, naquela indisposição que não acaba. E vai levando.

Lembra-se da mocidade, época em que ir aos cinemas era o melhor programa. A filha fala do DVD, diz que irá presenteá-la com um. “Tem filmes da sua época!”, diz sorrindo. “Aqueles filmes em que todos os homens fumavam e as mulheres – platinadas – faziam caras e bocas”.

– Credo! – comenta o neto caçula.

E ela, achando graça, diz que não era assim... tão antiga.
Bom mesmo era o rádio. Presente no quarto, na cozinha, na hora do banho e em infindáveis madrugadas de insônia. Sem predileção por algum programa, qualquer um lhe servia, contanto que preenchesse o silêncio do seu vazio.

Até que numa noite, já deitada, se enternece por uma voz tranquila que, com versos e poemas, acaba por despertá-la. Provavelmente de um homem maduro, carregada de equilíbrio e um quê de segurança. Ao fundo, uma música suave. E lhe vem uma emoção forte. Que voz era aquela dizendo justamente o que precisava ouvir? Poemas, frases, comentários. Evocada de maneira intensa, tão a ela direcionada, que só faltava chamá-la pelo nome? Ao término do programa, anota no caderno a estação. Nunca deixará de escutá-la, decide.

Com o tempo, vai criando afinidade, mais que isso, e deseja conhecer a fundo quem a profere. Deixa-se absorver pelas palavras, retendo-as na memória para que no decorrer do dia fizesse delas o seu estímulo. Toma coragem e liga para a estação da rádio, quer sentir a voz também por telefone. Cumprimentar o seu dono, agradecer a ele pelos conselhos, exemplos, poemas... E se sente feliz.

Mais adiante, satisfeita pela conversa, quer mais. E, numa tarde de sol, deixa na sede da rádio, numa cesta de vime, biscoitinhos de amêndoas – antiga receita da família. Há quanto tempo não os fazia, pensa. De manhã cedo, a visita ao mercado – o melhor lugar para encontrá-las.

Aproveitando, comprou também um vaso de flores e um aquário pequeno com peixes coloridos. Recorda-se de quando era menina... Adorava ir ao açude pescar. Que maldade! Conclui, 60 anos depois. E seguiu carregando sacolas e bolsas, estranhando o movimento das ruas. Trancafiada em casa, nesses anos todos, acabou se esquecendo do quão intenso era o lado de fora.

Espera com ansiedade a programação noturna e quase morre de felicidade quando ouve pela primeira vez seu nome. “Quero agradecer à dona Alice pelos deliciosos biscoitos caseiros com que me presenteou”. E, desde então, nunca mais deixou de fazê-los.

Reabre a caixa de poemas. Nas folhas amareladas, o registro dos seus sentimentos. Copia-os num papel de carta, antecipadamente adquirido. E envia, assim, um pouco de si.

Aguarda o programa. “Hoje, para vocês, um verso da dona Alice, minha mais assídua ouvinte”. E passa, então, a se sentir cúmplice.

Os filhos percebem as mudanças, mas não entendem.

Pelo correio e em cestinhas de vime, ela remete cartões e biscoitos, enquanto ele, sem saber, lhe remete a vida. 

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