Laura Medioli

Laura Medioli

Laura Medioli é escritora e presidente da Sempre Editora, responsável pela publicação dos jornais Super, O TEMPO e O Tempo Betim, além da rádio FM O TEMPO e do portal O TEMPO. Formada em estudos sociais, Laura já atuou como professora e se dedica de forma intensa hoje à causa da proteção animal.

LAURA MEDIOLI

O quiproquó

Muitas vezes, voltavam juntos, mas, seguindo ordens restritas dos respectivos pais, não se comunicavam.

Por Laura Medioli
Publicado em 22 de setembro de 2019 | 03:30
 
 
 
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Há muito os dois matutos vêm se atracando. Dividem a cerca há mais de cinco décadas, e entre eles tudo é motivo de discórdia.

Dizem que tudo começou por causa de dois metros. Sem a planta de suas posses, cismaram que na calada da noite alguém arredou a cerca em dois metros, para um lado ou para o outro. Quem invadiu território de quem nunca se soube. Depois, veio o problema com o cabrito. O bicho, pertencente a seu Zé das Bases, sem nenhuma cerimônia, invadiu a horta do vizinho, Zé das Couves. Foi devolvido com a boca amarrada com um pedaço de arame. O “das Bases” reclamou: isso não eram modos de tratá-lo. E, por teimosia, mandou o filho do meio amarrar o rabo da vaca no rabo do boi. Coisa complicada, mas que, no fim, atingiu seu objetivo: enfurecer o vizinho.

Desvencilhando a Mimosa do Poderoso, ele prometeu revanche. E nesse vai e vem, já se passaram 50 anos.

No início, quem saiu perdendo foram os garotos, que não compreendiam o porquê de não poderem brincar juntos, já que tinham a mesma idade – uma fileirinha de gente miúda que ia dos 5 aos 15. Eles se olhavam de longe, “se enamorando”, desejando comer manga verde à beira do açude, jogar bolinhas de gude ganhas na quermesse da igreja e caçar tatus nas noites de lua. As garotas, mais recatadas, também se observavam. Seria bom ter com quem conversar. Em meio a tantos homens, poder dividir dúvidas e ansiedades da mocidade emergente.

Quase diariamente se encontravam na “escola”, um par de salas escaldantes, perdidas no meio do nada, onde aprendiam com uma jovem professora os caminhos do beabá. Muitas vezes, voltavam juntos, mas, seguindo ordens restritas dos respectivos pais, não se comunicavam. Até o dia em que a menina, 15 anos de caboclice bonita, tropeçando em uma pedra, se estatelou no chão. Bateu a cabeça e, com pouco alimento, tonteou até perder os sentidos. Ficou por ali mesmo, estirada sob o sol quente da estrada empoeirada. Os irmãos, apavorados e sem reação, acabaram deixando a desfalecida ser acudida pelos vizinhos. Tapinha daqui, dali, um pouco de água no rosto até a garota ir se recuperando. Ao abrir os olhos, deu com ele: Juventinho, primogênito do Zé das Couves, caboclinho matreiro, cheio de juventude e beleza no alto dos seus 16 anos.

Para resumir a história dos dois, vou logo contando o ocorrido. Como se sabe, paixão não tem lugar nem hora, e foi ali, num atalho empoeirado e esquecido de Deus, que Mariinha e Juventinho se descobriram. No começo, se viam às escondidas, fingindo trabalho nos quintais, nas hortas e nos afazeres das casas. Eles se olhavam através da cerca, torcendo para os cabritos e as galinhas se enveredarem pros lados de lá ou de cá, já que era tudo meio misturado, sem se saber ao certo o que pertencia a quem.

Enquanto isso, os dois jovens iam se achegando mais, dando bons-dias e boas-tardes. Ela se enfeitando, usando vestido de ir à missa para regar canteiro de alface, colher limão-capeta e, como quem não quer nada, ficar por ali, cheia de rubor na face e afogueado no corpo. E ele lá, sem querer saber das vacas, do milharal precisando de capina, deixando-se ficar espiando os caprichos da menina.

Até que um dia, da estrada que ligava o vilarejo a lugar de gente, os dois, com seus poucos pertences, partiram no mundo, e deles nunca mais se teve notícia. Os vizinhos, ao se darem conta do sucedido, quase se mataram.

– Um dia eu vou capar o seu filho que desonrou a minha filha!

E o outro retrucava:

– Aquela vadia é que levou ele pro mau caminho...

E até hoje, 40 anos depois, persistem no achincalhamento aos “debandados do sertão”, como ficaram conhecidos.

Dizem que a última desavença foi por causa de uma galinha. O quiproquó foi tão feio que acabaram na delegacia. Não é que a galinha foi fazer o ninho exatamente debaixo da cerca? E aí? De quem eram os ovos?

Na delegacia, o doutor ouvia impaciente os dois matutos, enquanto a causadora de tudo ciscava formiguinhas no chão. A discussão era tamanha que o delegado, sem saber como agir, acabou dispensando-os.

– Negócio é o seguinte! Vão tratar de desanuviar a cabeça em casa, enquanto eu decido com quem ficará a galinha. Se continuarem a se atracar, meto os dois em cana!

Claro, bastou saírem do recinto para continuarem com as desavenças. E de dentro da delegacia, o doutor gritou para o único carcereiro:

– Ô Raimundo! Arruma um cheiro-verde, que hoje tem galinhada! 

E foi assim que se resolveu a questão. Pelo menos, foi essa a história que me contaram.

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