Imagino que não tenha lido a minha carta anterior sobre a folia belo-horizontina, – mas eu não fico chateado, não, relaxa. Leia essa, de preferência ao lado do governador Fernando Pimentel, uma vez que sua única contribuição ao Carnaval foi ser o primeiro a sair em defesa de mais uma patacoada monstra da PM. A mesma que é de responsabilidade do Estado. Afinidades em comum, governos à parte, saquei.
Convidei o senhor a sair às ruas, lembra? – nada de camarotes. Não te imaginei vestido de Rei Momo entre garotas de biquíni, Homens-Aranha e o Chapolin. Mas pensei que talvez seu coraçãozinho pudesse balançar e, quem sabe, veríamos o senhor de bermuda e camiseta regata atravessando a avenida dos Andradas: água mineral em mãos, nem precisava de catuçaí, o sorriso amarelo tentando brotar aí, que seja. Tomei duas garrafas de Selvagem esperando o senhor, os amigos, os conhecidos e malucos de passagem. Topei vários. Mas o senhor não veio. Cinco dias se passaram e nada.
Aí fiquei um pouco confuso em como o senhor pode falar sobre o Carnaval sem ter comido a festa com as próprias mãos. Sem ter se jogado no mar de milhares de pessoas dispersas pelas ruas por um dia que seja, por meia hora que fosse de amor, ilusão, revelação, tesão pela vida de pé no chão e cabeça nas nuvens. Logo, me parece que o senhor prefere usar o cardápio de frases levianas e mesquinhas que tem na manga, dizendo que somos “rebeldes sem causa”. Constatações sobre uma história da qual o senhor não faz parte; sobre um sentimento que o senhor não consegue chegar perto de entender por se abster de querer vivê-lo. O maior Carnaval da história da cidade.
Imagino que o senhor não ande de bike. Mas o Bloco da Bicletinha saiu às ruas para ocupar as faixas que majoritariamente abrigam carros, para sentir vento no rosto, para andar de bicicleta em um dia de Carnaval. Simples. Saiu na boa, tranquilo e favorável. E tomou cacetada, spray de pimenta, bomba, mata leão e todo o kit repressão da polícia. A justificativa: alguém na Savassi ligou para o 190 incomodado, algum PM relatou que “encostaram nele” e era preciso manter a “ordem” – como se cada bike carregasse uma metralhadora do Rambo ou um som potente tocando heavy metal às cinco da manhã. Jura, prefeito?
Se o governador estiver ao seu lado agora, ele poderia explicar como a tropa comandada por ele consegue, a partir de um telefonema ou de uma desculpa esfarrapada de “ordem”, transformar um rolê de bicicleta em sangue, pânico e gás lacrimogêneo em quem estiver na frente – incluindo um ciclista que trabalha na BHTrans e acabou preso. Parece ficção, mas a violência às vezes supera a invenção.
Assim como imagino que o senhor nunca tenha estado no viaduto Santa Tereza, numa noite de Duelo de MCs, ensaios de maracatu ou Gaymada. Daí parece aceitável que as grades de uma festa privada da DM Produções impeçam a Angola Janga de chegar até o coração de sua formação, mesmo tendo programado com antecedência encerrar sua festa no mesmo viaduto, onde a resistência negra ensaiou para ser um dos blocos mais lindos da cidade.
Façam o exercício de colocar essa frase na boca de vocês, senhores prefeito e governador. Assumam nos mesmos microfones que usam para fazer publicidade própria: “vocês erraram, erram e vão errar ainda mais – e esses erros não são exceção, são vícios”. O que não queremos ouvir é que a instituição, a corporação, o governo e todo o seu aparato agem só para garantir a “ordem” e o bem-estar. Ninguém estava à vontade ou tomado pela mágica do bem-estar, quando essa teoria de “ordem” (que saco essa palavra) foi aplicada no Carnaval – como é feita todo dia em doses bem mais violentas nas favelas, principalmente.
É aí que entra a Revolta da Felicidade. Ou, se preferir, algumas causas de toda a nossa rebeldia fantasiada de alegria nesses últimos dias. Pular a catraca do metrô e querer derrubar suas grades significa clamar por um transporte de qualidade, aberto por mais tempo, já que não querem nos ouvir, muito menos nos deixar passar. Repudiar as grades do “Camarote Belô” se traduz em não aceitar que a cultura negra seja encostada pelo patrocínio privado que chegou ontem tomando um baita símbolo da cidade e uma história étnica inteira. Andar em comboio de bicicletas na folia diz sobre o espírito de quem quer ir ao trabalho ou para casa ou comprar pão ou atravessar Pampulha-Centro-Barreiro de bike.
Não há crime nenhum nisso. Não há “desordem” em querer encontrar formas de vivência que nos transforme em tudo o que podemos ser.
Ano que vem tem mais. Quer dizer, hoje ainda tem Vira o Santo. Mas não espero que o senhor dê bola a esses anseios de querer uma cidade melhor, não necessariamente em “ordem”. Por isso, decidi voltar a fazer os poemas que nem faço por aqui e não escrever mais ao senhor. Afinal, é seu último ano à frente de Belo Horizonte.
Talvez no próximo o senhor possa apreciar de longe o Carnaval que tentou impedir, reprimir, cercear. Nosso Carnaval nos diz que podemos ser infinitos, prefeito. Com todo o respeito a sua falta de percepção ao amor – ou como queira chamar o sentimento dessa festa.