Observatório das Américas

Não se dança rumba sem gingado

Competição por poder entre EUA e China na América Latina

Por Oswaldo Dehon
Publicado em 04 de agosto de 2021 | 03:00
 
 
 
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A rumba e a salsa são duas das principais danças das Américas. Nasceram em Cuba, antes da revolução de 1959, e foram difundidas nos EUA, onde cresceram e produziram o mambo. Ao lado de cumbia (colombiana), samba (brasileiro-africano) e tango (argentino-flamenco), rumba e salsa se tornaram símbolos da flexibilidade do corpo, da expressão do movimento e da latinidade.

F. D. Roosevelt, ao lidar com a América Latina (Latam), produziu a política externa da Boa Vizinhança (PBV) nos anos 40. Foi criada como uma tentativa de aproximação cultural, típica do poder brando, destacando dança, música e cultura da região. Após os traumas do intervencionismo anterior, a PBV buscava substituir isolacionismo por engajamento e cooperação, dando início ao sistema interamericano, com a criação da Organização dos Estados Americanos (OEA) e das instituições de segurança coletiva. Ao lidar com a Latam, Roosevelt indicava ser prudente compreender os ritmos e identidades regionais.

Nas décadas posteriores a construção da hegemonia norte-americana deixou de lado a PBV. A Guerra Fria e a política da Contenção relegaram a região ao segundo plano. No início dos anos 90, porém, a prioridade da política externa para a Latam passou a ser a promoção do comércio, da economia de mercado e das democracias eleitorais, vinculando as promessas de êxito dos vizinhos às políticas defendidas por Bush Sr. e Clinton. O engajamento exterior dos EUA perdia sua característica geoestratégica, curvando-se à geoeconomia, deixando a Latam distante das prioridades do Departamento de Estado.

A herança isolacionista na política externa manteve a máxima que a única região relevante para a segurança dos EUA é o Hemisfério Ocidental, do Canadá à Argentina. A leste e oeste, o país estaria ladeado por oceanos; ao sul e ao norte, por vizinhos sem maiores ambições geopolíticas. O recuo na liderança, nos anos 90, partia da hipótese de que a geoeconomia conduziria ao protagonismo da “nação indispensável”. No centro da globalização, o país reduziria os investimentos em apoio humanitário, guerras ou auxílio para o desenvolvimento de nações distantes, em defesa dos interesses dos pagadores de impostos locais. As elites econômicas, pressionando tanto democratas quanto republicanos, conduziram a um estreitamento na política externa, mantendo Washington distante das nações hemisféricas, à exceção do Nafta.

O populismo econômico de Clinton buscou o engajamento regional pelo comércio, sem sucesso. Foi forçado ao humanitarismo engajado. Na campanha, Bush Jr. criticou os chamados “excessos internacionais” do segundo mandato democrata, que mesclou operações de paz e apoio para a estabilização europeia. Mais uma vez, agora na retórica republicana, a Latam podia esperar. O bem público a oferecer – a luta contra o terror – teria o papel de assegurar uma alternativa ao anticomunismo, em baixa após o fim da URSS. O terrorismo foi associado às guerras irregulares e ao narcotráfico em Colômbia e México; às atividades ilícitas, ao tráfico de armas e a remessas de recursos para o Oriente Médio, na Tríplice Fronteira. A agenda deslocou-se do livre comércio para a segurança nacional.

Nesse ínterim que a China emerge na região. No início dos anos 2000, o comércio dela com a Latam era de US$ 12 bi. Em 2019, mais de US$ 315 bi. O país de Confúcio tornou-se o principal parceiro comercial de Brasil, Argentina, Peru, Chile e Uruguai. Os empréstimos governamentais para a região excedem US$ 140 bi, desde 2005, e são maiores que os do Banco Mundial e os do Banco Interamericano de Desenvolvimento, juntos. Os investimentos chineses em infraestrutura, privatizações e concessões, agricultura e energia ocorreram, desde os anos 90, em governos conservadores, liberais ou de esquerda. Os aportes de recursos não construíram políticas restritivas de compliance ou impediam a concorrência com outros países. Nem mesmo os governos que demonstram antagonismo em relação à China têm impedido os investimentos ou a cooperação regional.

O protagonismo dos EUA na região depende de uma política externa flexível, pragmática, que entenda as demandas por investimentos, comércio e cooperação tecnológica. A manutenção de uma agenda orientada pela segurança nacional dificilmente restringirá o avanço da cooperação regional com Pequim. Neste momento de mudança de orientação de política externa, talvez faça sentido lembrar dos anos 40, da rumba, da salsa e do sentido da PBV.

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