“Oi, Manuela! Olha aqui! Manu..., oi, oi... Cheguei... olha aqui. Gente, essa menina não larga o celular!” O nome é fictício, mas a situação é real: nossa corporeidade, nosso sistema de identificação, de conexões com o mundo, com as pessoas e conosco mesmos, já sofreu mutações.
Apresento a você, leitora e leitor desta coluna, o olhar do filósofo que contempla, em um silêncio expressivo, algumas situações-sintoma dos nossos tempos. Elas estão presentes mesmo entre pessoas de leitura, com trabalhos fixos, pessoas amorosas e alegres, são o canto inebriante e envolvente das sereias atuais, que ainda capturam e arrebatam as mentes. Essas situações nos fazem pensar.
Encontros de domingo, em família. Irmãos, cunhados e cunhadas, mãe e pai, filhos, sobrinhos, avós e netos, todos vão chegando, após os cumprimentos iniciais, superadas as distâncias e os pontos de vista, cada um se ajeita em um lugar, conecta-se nos sinais de Wi-Fi e controla suas ilhas.
Lugares, celulares, copos e armas: os lugares dizem de nós mesmos. Sempre observei como psicopedagogo que as áreas escolhidas pelas crianças em uma sala ou em uma atividade diziam de seus apelos ou necessidades. Nossas regiões de proteção dizem de nós mesmos. Os grupos dos homens, os grupos das mulheres ou os de ideias políticas, mas próximas.
Não se trata apenas de uma questão de afinidade. Trata-se também de movimentos inconscientes que nos distanciam das trocas, nas novas oportunidades, de provocar outros assuntos e pautas. O medo de travarmos conversas em que nossas opiniões e pontos de vista nem sempre prevalecerão nos lança em um distanciamento estranho e fechado em achismos. Busque outros espaços, permita-se não discutir, mas ouvir outros pontos de vista.
Os avanços tecnológicos estão presentes. E não cabe querer descontruir as facilidades e possibilidades das inovações e dos celulares. Cabe afinar o olhar, cabe observar as transformações, cabe reavaliar o comportamento frente ao que usamos como nossas extensões.
Quantas vezes vi pessoas, nas épocas dos eventos e shows, com o celular em punho, filmando o que acontecia à sua frente. O postar, o mostrar, o registrar tomou conta do vivenciar, do curtir, do olhar, do sentir. Uma necessidade inconsciente de mostrar tudo. A intimidade, o convívio, as particularidades se dissipam. Se é que tem que postar, viva primeiro, depois coloque lá naquela janela do ego! Os jogos roubam nossas crianças de nos ver de frente. Sem nenhum problema com os jogos, a questão são os momentos; me alegro ao ver os balanços, ao ver os quebra-cabeças, ao ver os jogos de montar, ao ver o exercício da imaginação. O pior é olhar para os pais delas, para seus tios, e vê-los também preferindo aquele espaço fantasioso no lugar do contato.
Todo o discurso e argumentos sobre o uso de armas, sobre os desafios de segurança, sobre os desafios da coerção do Estado não cabem em pequenos parágrafos, mas cabe a percepção do que tudo isso simboliza e provoca.
Sei, também, que estes tempos trazem questões de exclusão social, de pobreza, de tráficos, de milícias e de comportamentos bem pouco profissionais de algumas entidades de proteção e que tudo isso demanda reflexões e olhares mais aprofundados, mas ainda assim cabem a nossa percepção e avaliações como cidadãos. Então, quando vemos pessoas em clubes, na lida de casa, nos passeios, com armas à mostra, isso tem um sentido.
Quando o pânico domina a ação e impede a leveza de escolher e viver, sei que já não temos espaço para sermos. Quando você começa a ver ameaça em tudo, em um passeio no parque, em uma saída à rua, em uma ida ao supermercado, alguma coisa está mudando em nossa forma de defesa e de proteção. Quando o outro, a todo momento, é sempre alguém em iminente confronto conosco, algo mudou demais. E não foi para melhor. Boas escolhas.
*Otávio Grossi é filosofo, mestre em psicologia e psicopedagogo de autistas, além de mentor de empresários e autor do livro “Conquistas Autênticas”, da editora Cândido. É colunista do jornal O TEMPO e participante do programa Interessa, nas segundas-feiras, na rádio Super 91,7 FM.