A notícia da suspensão da partida final da Copa Libertadores, entre as equipes argentinas do Boca Juniors e do River Plate, surpreendentemente, ficou restrita ao noticiário esportivo. Quando a torcida de um time dá início ao linchamento dos atletas da equipe rival, às portas do estádio, é preciso perceber que há muito mais em pauta do que as condições de gestão esportiva. O evento em questão pode ser visto como retrato da falência geral da Argentina: não apenas em termos econômicos e produtivos, mas principalmente como sociedade.
Desde que Cristina Kirchner deixou o poder, em dezembro de 2015, minguou o anedotário que a imprensa veiculava sobre o governo de nossos vizinhos ao sul. Não ocorrem mais casos como o da surreal visita de Cristina à China, voltada para a celebração de acordos comerciais vitais, mas que foi manchada pelas mensagens que a mandatária postou em rede social: propositalmente, Cristina trocava a letra “r” pelo “l”, e, assim fazia troça grosseira sobre o sotaque de seus anfitriões.
O atual presidente, Mauricio Macri, adota postura sóbria e enfoque realista sobre os problemas de seu país. Nem por isso, conseguiu os resultados que todos esperavam: o déficit público seguiu aumentando, a inflação permanece muito alta, o PIB não cresce – mas as taxas de juros o fazem, e muito –, e o país se viu obrigado a pedir novo empréstimo ao Fundo Monetário Internacional. Assim, segue o sofrimento dos platinos.
Em entrevista ao jornal espanhol “El País”, o escritor argentino Alejandro Katz afirmou que seus conterrâneos têm a perene impressão de que merecem mais do que recebem, de forma que se lançam na busca por recompensas pessoais que estão muito além da capacidade da nação de gerar riqueza. A persistente inflação desse país, assim, seria resultado de um padrão de consumo incompatível com a renda da maioria das pessoas, o que representa endividamento progressivo das famílias e, com isso, o sequestro da riqueza do futuro em favor das despesas no presente. Trata-se, enfim, de uma leitura sociológica que Katz faz do cenário econômico: se aceitassem a mediocridade como referencial, os argentinos não pressionariam tão fortemente seu enfraquecido sistema produtivo.
A riqueza extrema que a Argentina obteve, há cerca de um século, foi se dispersando ao longo das décadas, deixando atrás de si um saudosismo quase irracional. Enquanto os brasileiros são criticados por esperar um futuro grandioso que nunca chega, nossos vizinhos ao sul não conseguem se desapegar de um passado que já está, há muito, encerrado: pautam suas vidas por encenar um bem-estar de ficção.
Por trás dessa fachada de felicidade, agora se vê que há um colapso social em andamento. O convívio social, a relação com a diferença se tornam impossíveis: uma das causas pode ser a prolongada exposição a condições de crise constante, que frustra a todos e faz acumular rancores de forma generalizada. A possibilidade de mais uma derrota, mesmo que no futebol, pode ter se tornado uma frustração inaceitável para milhões de pessoas: assim se explicaria a explosão de violência.
Após muita especulação, a partida entre Boca Juniors e River Plate deve se realizar em Madri, na Espanha. O maior clássico do futebol platino, portanto, segue o mesmo caminho de mais de 250 mil argentinos: emigra para esse país europeu. Difícil encontrar simbologia mais forte para o estado em que se encontra a Argentina hoje.