Que o futebol é o esporte mais popular do mundo ninguém duvida. Já a explicação para tal fenômeno divide opiniões. Pessoalmente, destaco o papel da capacidade que esse esporte demonstra para absorver e conviver com as diversidades culturais que marcam nossa espécie. Com regras simples e amplo espaço para a criatividade, o futebol consegue ser uma tela em branco para os mais diferentes povos, que aí imprimem suas formas de ver o mundo e, principalmente, expressam a forma como querem ser vistos pelos demais. O ponto de partida é o mesmo, mas os caminhos e resultados são surpreendentes.

É por isso que se pode enxergar a mentalidade de uma torcida pelo comportamento do time que essa apoia. O incidente envolvendo jogadores do Boca Juniors, em partida recente realizada em Belo Horizonte, é retrato da Argentina atual: diante da derrota, a revolta estéril, as ações desencontradas, as declarações bombásticas e desprovidas de sentido. Como agravante, a explosão de violência vem impulsionada pelo descrédito estrutural ao adversário e por tudo aquilo que compõe o contexto desse – uma visão de mundo que se aproxima do racismo.

Jogadores de futebol se sentem autorizados a manifestar explicitamente a mentalidade e os valores da sociedade da qual fazem parte. Portanto, não deve causar surpresa a memória recente do presidente argentino Alberto Fernandez, dizendo que os brasileiros “vieram da selva” como uma contraposição ao seu povo, que teria “vindo da Europa” – declaração feita a empresários espanhóis, em tom claro de autoelogio.

O rico passado da Argentina, sempre aludido como raiz do sentimento de superioridade de nossos vizinhos, contrasta com a longa e inexorável decadência desse país. Entretanto, em termos históricos, o período de crise vem sendo muito mais duradouro do que a época da riqueza farta – proporcionada, sobretudo, pelas exportações da carne do gado selvagem que povoava o pampa. Quando coube aos argentinos perpetuar a riqueza, investindo com sabedoria o lucro fácil da virada do século XIX para o XX, teve início o pesadelo.

A principal reação dos argentinos à crise que avança sem parar é a fuga: enquanto muitos fogem do país, a maioria foge da realidade. Na política, as promessas salvacionistas ganham apoio imediato, apenas para se tornarem alvo da impopularidade massiva logo após a eleição: assim, salta-se da esquerda para a direita com os mesmos níveis de autoengano e decepção de um adolescente apaixonado. Tal ciclo se repete tanto que a metáfora do tango já não se aplica.

Mais do que economicamente, a Argentina convulsiona do ponto de vista social, cultural e civilizatório. Esse processo deve demorar a se concluir, e, enquanto ocorre, devemos esperar dos vizinhos mais espasmos comportamentais. O apego às imagens do passado, mesmo que reconfortante, nunca levou a Argentina adiante, e é um vício que deve ser abandonado. Enquanto isso não ocorre, o futebol seguirá sendo um local privilegiado para se observar a luta dos argentinos contra a realidade.