PAULO PAIVA

Quanto vale a vida?

Em certas circunstâncias, fazer justiça torna-se bem mais complexo do que aparentariam as frias palavras de sua definição


Publicado em 24 de setembro de 2021 | 04:00
 
 
 
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Em certas circunstâncias, fazer justiça torna-se bem mais complexo do que aparentariam as frias palavras de sua definição. No contexto dos eventos que marcaram os 20 anos dos ataques terroristas nos Estados Unidos, a Netflix lançou o excelente filme, dirigido por Sara Colangelo, “Quanto Vale?”, baseado em fatos reais, jogando luz no processo de indenização às famílias dos quase 3.000 mortos. A pergunta é direta – quanto vale a vida? –, mas a resposta não está escrita nas leis, estabelecida na jurisprudência ou firmada nos costumes.

Para evitar crise profunda nos setores de seguros e aeroviário e intermináveis processos judiciais, o Congresso americano contratou o renomado advogado e professor de direito Kenneth Feinberg para coordenar a distribuição do Fundo de Compensação às Vítimas do 11 de Setembro.

Feinberg, racionalista convicto e experiente mediador de conflitos, concebeu um modelo para estimar as indenizações, aplicável a todos os casos. Sua meta era atingir, até uma data predeterminada, 80% de adesões a um acordo extrajudicial. O filme se desenrola exibindo o embate entre a racionalidade do advogado e a realidade concreta da vida. Um obstáculo enfrentado foi a resistência ao acordo imposta pelos advogados dos executivos mortos, exigindo que a fixação do valor da indenização correspondesse ao nível de rendimentos da vítima.

Seria justo um executivo receber do mesmo fundo público mais do que um zelador, ambos mortos nas mesmas circunstâncias?
Com a grande maioria das famílias das vítimas comuns, seus problemas não eram menores. Diante de dramas, como o de um homossexual que perdeu seu parceiro, mas não tinha como comprovar, ou da amante que tinha duas filhas de um bombeiro, cuja esposa tinha outros três filhos, o mediador passou a entender que a razão, suas fórmulas e números não eram suficientes para lidar com emoções, paixões e dores de histórias interrompidas. Sua racionalidade insensível gerava desconfiança nas pessoas.

A entrada de Charles Wolf, líder dessas famílias, dá novo curso às negociações. A relação de Feinberg com Wolf, apesar de suas divergências, foi mantida com respeito mútuo e cordialidade, o que foi essencial para estabelecer confiança e manter as negociações no âmbito da boa-fé; determinantes para o sucesso dos acordos.

Esses dilemas não estão tão distantes de nós. As negociações para reparar os danos dos desastres de Mariana e Brumadinho enfrentam questões semelhantes. Mais ainda, a ausência de mediador independente e experiente, equívocos na concepção da governança da reparação, no caso de Mariana, e a participação do Estado como mediador e parte, colocando na mesa de negociações seus próprios interesses, têm impedido a construção de um ambiente de confiança e do princípio de boa-fé.

Que os negociadores daqui aprendam as lições do filme de Sara Colangelo. Quanto vale a vida?

 

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