Dia 3 de julho de 1951. Colocada de forma seca assim, a data pode não dizer muito para uma parcela considerável da população. Mas, na prática, é um marco muito importante: foi nesse dia que o Congresso Nacional aprovou a primeira lei que tornou discriminação racial uma contravenção penal. Sim, o país começou a dizer abertamente que racismo não era só brincadeira há 74 anos. E, se isso te chocou por ainda não termos compreendido um conceito tão simples, você não está errado. Se pensarmos que a resolução do Conselho Nacional de Trânsito (Contram) que colocou regras ao uso de cadeirinhas no transporte de crianças em veículos é de 2008 e já é amplamente aceita, já temos uma sinalização de que não estamos falando sobre uma simples questão de adaptação.
Está bem. Eu também concordo e aceito as críticas que vierem sobre a aleatoriedade da escolha da comparação. Racismo e regras de trânsito não têm ligação nenhuma mesmo. Mas a ideia aqui é só mostrar como o que vira lei passa a ser seguido pela maior parte das pessoas. Eu poderia ter citado vários outros exemplos, mas quis um mais visível e recente. Eu me recordo bem de quando noticiamos as regras de uso de transporte de crianças em veículos. Fizemos infografia desenhando os padrões de tamanho, peso e idade adequados para bebê conforto, cadeira e banco de elevação. No início, algumas pessoas esbravejaram, disseram que os filhos sempre andaram soltos no carro e estavam vivos, acusaram o governo de querer lucrar com a venda de equipamentos de segurança, e todo esse falatório comum quando há mudanças.
Nem 20 anos se passaram, e aqui estamos nós, ostentando cadeirinhas que viram carrinhos para caminhar com os bebês nas calçadas. Quem nasceu depois disso nem consegue imaginar um mundo onde podíamos pular de um lado para o outro no banco enquanto o carro passava pelo Anel Rodoviário. Se a caminhonete do meu falecido tio Manuel pudesse falar alguma coisa lá na década de 1990, em São João del-Rei, certamente seria “socorro” quando juntavam as crianças da família para passear em pé na carroceria.
Mas não é porque eu vivi essa realidade anterior às regras que eu não concorde que a sociedade evolui. Quantas crianças não tiveram a mesma sorte que eu de sobreviver a essa falta de segurança do século passado e viraram estimativas de mortos no trânsito? É fácil de entender que um modelo fica ultrapassado à medida que obtemos mais informações coletivamente. Então, sim, prendemos nossas crianças em cadeiras. Mas, voltando ao tema central deste texto, que é o racismo, por qual motivo vocês acreditam que a aceitação não seja tão imediata? Vamos ao contexto: em 3/7/1951, 63 anos depois da Lei Áurea, que decretou a abolição da escravidão no Brasil, o Congresso aprovou a Lei Afonso Arinos, que criminalizava práticas de discriminação racial. É por essa razão, inclusive, que a data ficou marcada como o Dia Nacional de Combate à Discriminação Racial.
O impulso para a assinatura da lei foi a negativa de um hotel em São Paulo de hospedar a bailarina negra norte-americana Katherine Dunham em função de sua cor de pele. A história repercutiu no mundo inteiro e expôs o óbvio: brasileiros não são tão receptivos assim quando o visitante é preto. Fizeram a lei, e vieram os “mas”. “Mas chamar o amigo de ‘negão’ é crime?”. “Mas não posso nem brincar mais?”. “Mas vamos ter que tratar pretos como iguais sempre?”. Junto com os questionamentos veio a impunidade, e ninguém foi condenado por descumprir essa lei.
Desnecessário dizer que isso não significa que não ocorreu discriminação, né? Depois disso, a sociedade foi avançando e novas leis foram surgindo até chegarmos ao cenário atual, em que racismo e injúria racial são crimes com pena de reclusão de dois a cinco anos. Só que, ao contrário da regra da cadeirinha, o respeito ainda não é amplamente disseminado. Ainda existem saudosistas que consideram o crime de racismo humor. Enquanto ainda nos entretemos com preconceito, muitos negros ainda são mortos nas ruas em função da cor da pele. E, aqui, eu jogo o dilema para você que chegou até este ponto do texto: o que falta para apertamos também o cinto dos racistas?