Representatividade

Alô branquitude: somos todos capazes de servir nossas próprias cocadas

Só estou dizendo que nós negros podemos e queremos mais do que aqueles destinados a servir sempre

Por Tatiana Lagôa
Publicado em 17 de junho de 2022 | 03:06
 
 
 
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Nos últimos dias, houve um forte debate sobre uma situação ocorrida em um programa de televisão. A apresentadora pediu para que a convidada do programa, uma mulher negra, servisse cocada para os demais convidados. Assim que eu assisti a cena, replicada em redes sociais, o incômodo bateu forte. Não por causa daquele ato em si, mas pelo o que ele significa: diversidade não é o mesmo que equidade. Ou, em bom português: nós, negros, podemos ocupar o espaço que for, mas é impossível fugir do racismo entranhado e naturalizado em nossa sociedade. 

Dessa vez, a vítima foi aquela senhora e o ato preconceituoso foi daquela apresentadora. Mas, poderia ter sido em qualquer outro contexto e com qualquer outra pessoa negra porque a causa é a mesma. O que ocorre é que uma parcela considerável da população ainda não conseguiu abandonar aquela visão difundida na época da escravidão de que negros devem servir ao outro. E esse pensamento é passado de geração em geração e se manifesta em ações cotidianas.

Qualquer outro convidado daquele programa poderia ter se levantado e servido a cocada. Tanto que o outro apresentador, também negro, interviu e pegou a bandeja. Ele tentou reduzir os danos daquela situação lamentável a que uma convidada estava exposta. Veja bem, é importante frisar a palavra convidada porque aquela pessoa foi tirada da casa dela para passar por uma desfeita em rede nacional. E isso não é pouco.

A apresentadora se retratou alguns dias depois do fato, disse ter noção do erro cometido. Agora, para a internet, é “bola pra frente” e foco nos erros futuros. Só não passa para a população negra que, infelizmente, sabe que outras situações virão. Por isso é importante o debate em torno do tema. Para que outras pessoas entendam que ato preconceituoso não é apenas verbalizar algum xingamento. Ele se manifesta de diversas formas e o tratamento diferenciado a um grupo é uma delas. 

Meu irmão, Marcelo, que o diga. Praticamente no mesmo dia em que a senhora sofria discriminação na televisão, ele era vítima de preconceito lá em São João del Rei, nossa terrinha no Campo das Vertentes. Era noite e ele seguia a pé na rua onde mora, aliás onde fomos criados. Uma mulher, que descia do carro, simplesmente voltou para o veículo quando o viu. Ele ainda conseguiu ver o olhar de receio que ela direcionava a ele. Quando ele chegou a uma distância maior, viu a mulher sair do veículo às pressas. “Será que ela teria a mesma atitude de medo se eu fosse branco?”, ele perguntou ao me contar o caso. Acho que não. Aliás, lamento muito, só que provavelmente não, mesmo.

E o que esses dois casos têm em comum é o ponto central de toda a discussão: o olhar estereotipado. É ele que faz com que mulheres negras sejam vistas necessariamente como empregadas e homens negros como potencial criminoso. E aqui eu preciso abrir um parênteses para dizer que não estou menosprezando quem faz faxina para sobreviver. Só estou dizendo que nós negros somos, podemos e queremos mais. E, me desculpem os brancos, mas sirvam suas próprias cocadas das próximas vezes.

 

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