REPRESENTATIVIDADE

Depressão é ‘coisa de branco’?

É imensurável e complexo demais concluir quem nasce primeiro, se a depressão ou a sensação de não pertencimento

Por Tatiana Lagôa
Publicado em 29 de setembro de 2023 | 03:00
 
 
 
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A um dia de setembro acabar, este mês dedicado a conscientizar as pessoas sobre o risco de suicídios, vou tentar falar um pouco de um assunto extremamente difícil, mas necessário. Até que ponto o racismo pode destruir a saúde mental da população negra? É imensurável e complexo demais concluir quem nasce primeiro, se a depressão ou a sensação de não pertencimento, a crise de pânico ou a certeza de ser alvo em uma sociedade racista. 

Sim, seria leviano dizer que todo mundo exposto a um preconceito vai tirar a própria vida, porque seria o equivalente a pensar que toda pessoa negra vai passar por isso. Muitos de nós não se deprimem, nunca sentiram crise de pânico e vão passar a vida sem sentir as chamadas dores na alma. Somos únicos e com histórias de vidas diferentes. Isso sem contar que o suicídio é multifatorial, ou seja, não é fruto de uma situação única e nem sempre é explicável. 

O que se sabe, no entanto, é que, para uma parcela da população que tira a própria vida, isso ocorre em função de um sofrimento mental. Por isso, é importante falarmos sobre saúde emocional. Como cada grupo social vive suas questões únicas, não seria diferente para a população negra. 

A primeira questão que eu quero levantar aqui é sobre os estereótipos que muitas vezes nos definem e nos amarram em conceitos predefinidos do que somos. Qual o peso de um não encaixe nesse script para uma pessoa? Um homem negro, por exemplo, que é visto pela sociedade pós-escravocrata como uma figura viril, forte, que precisa dar conta. O que ele faz quando cai em depressão e começa a não se encaixar neste perfil daquele que vence a vida nos braços? E aquele que tem uma essência completamente diferente e é mais sensível? Como você imagina que são os olhares e cobranças com as quais ele convive diariamente? E mais: por qual razão alguém acha que pode definir como um indivíduo deve agir com base no tipo físico dessa pessoa? Simples: o que é a sociedade senão uma grande definidora de regras e críticas? 

Vamos às mulheres negras. Depois de anos e anos após termos sido escravizadas, usadas para cuidar de pessoas brancas e amamentar filhos dos escravocratas e abusadas sexualmente, podemos dizer que já somos vistas em pé de igualdade com as mulheres brancas? Essa eu posso responder com a sabedoria de quem vive essa realidade: em muitos contextos, sim, e em muitos outros, não. Aí, quando somos desrespeitadas, descredibilizadas, e reagimos, sabe o que uns e outros comentam? Que somos grossas e raivosas. Exigem postura de “princesa” de quem não é tratada como tal. Ser sorridente e gentil quando se é respeitada é fácil, até mico-leão-dourado de zoológico consegue. Agora, quero ver ter fala mansa quando se ouve absurdos racistas. 

E aqui você pode estar se perguntando: o que isso tem a ver com a saúde mental? É que várias pessoas que passam por situações de humilhação se deprimem. Conclusão meio óbvia, né? Mas não para aqui a linha de raciocínio. Se pensarmos que, também em função do racismo, uma camada importante da população negra vive em contexto de pobreza, tratar-se da depressão é um luxo para muitos. Sem recurso, sem apoio, invisibilizada e ainda sem tratamento. Como uma pessoa que se encaixa nesse quadro vai se curar? E, como se não bastasse, sendo ainda vítima de cobranças por não conseguir fazer valer o estereótipo que eu citei anteriormente. 

Uma pessoa emocionalmente adoecida pode não ser funcional e fraquejar. O problema é que, em uma sociedade racista, pretos e pretas não têm “licença poética” para isso. A escravização dos nossos antepassados criou a visão social de que “valemos quanto pesamos” e, no momento em que passamos a gerar menos resultados, somos eliminados. E o resultado? Mais isolamento, mais desilusões, mais perdas e mais depressão. 

Com este texto, meu objetivo é que, em outros Setembros Amarelos, possamos pensar também na população negra que tem dores invisibilizadas e que a luta seja pela universalização do direito a um tratamento digno. Que assim seja.

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