Representatividade

Malas brancas e os falsos justiceiros

Acho que poderíamos guardar os socos-ingleses, a vontade de bater em pessoas negras e o preconceito na mala

Por Tatiana Lagôa
Publicado em 08 de dezembro de 2023 | 03:00
 
 
 
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Brasil. País do futebol, da “camaradagem” ou da pseudodemocracia racial e onde quase todo mundo “até tem um amigo preto” para “bater uma bola no fim de semana”. Nesse contexto, faz sentido a gente tentar unir o mundo do futebol com o genocídio escancarado de pessoas negras que ocorre por aqui. E só para lembrar, genocídio é o extermínio de um povo, um tema nada novo em um país firmado em bases escravocratas. É tão antigo quanto o racismo e as tais malas brancas e pretas no futebol. Mas a questão é que os dois assuntos têm sido muito debatidos nos últimos dias, e eu decidi também dar minha opinião. Parece tudo desconectado até aqui, né? Pois segue o raciocínio, que vou tentar ligar essas pontas soltas. 

Primeiro, vamos ao ponto mais “leve”. No mundo da bola, tem fervido a discussão sobre o recebimento da mala branca, ou seja, um pagamento extra feito por alguém para estimular os jogadores a vencer um jogo. Sim, em tese eles já são pagos para isso, uma vez que essa é a profissão deles, mas vamos fingir normalidade. Aí vem a mala preta. Assim, fora de contexto, parece que estou falando da bolsa mais bonita do mercado. Porém, esse aí é o termo usado para aquele dinheiro pago para os atletas perderem o jogo. Ou seja, o branco é incentivo, e o negro é obscuro, negativo. 

Aí, como eu sei bem o tipo de comentário que às vezes surge nesse tipo de debate, eu já imagino um “sabe-tudo” falando: “Ah lá ela já dividindo as pessoas”. Em minha defesa, eu tenho alguns argumentos. Um deles é que a ideia de falar desses termos foi de um colega de profissão e leitor, Régis Souto. “Para estimular a vencer, a imprensa está tratando como ‘mala branca’. Para incentivar a perder, chamam de ‘mala preta’. Por que será?”, postou ele nas redes sociais. E convenhamos, por que não podia ser mala azul, roxa, verde? Se me permitem falar, a grande verdade é que esse discurso que coloca sempre o negro como negativo, tal qual o “lado negro da força”, é racismo puro, ou “purim”, como falamos aqui, em Minas Gerais. 

Agora, vamos para a segunda parte do raciocínio. Essa aqui não inspirada em mensagens de amigos, e sim em uma indignação minha mesmo, eu confesso. Depois de alguns assaltos no Rio de Janeiro, alguns moradores de Copacabana decidiram revidar se intitulando como “justiceiros”. Bem, já que estamos falando sobre as entrelinhas, vamos trazer alguns sinônimos tirados do dicionário: justo, imparcial, aquele que aplica a justiça. Já justiça quer dizer equidade, que é equivalência, igualdade. Percebam que, quanto mais palavras colocamos no texto, mais distantes de justiceiras essas pessoas ficam? 

Um grupo de homens de classe média-alta e brancos, com soco-inglês e uma vontade de fazer “justiça com as próprias mãos”. Se é feita pelas próprias mãos, sem julgamento, já não é justiça e, se envolve castigo físico – que não está previsto no código vigente do país –, passa a ser crime. Então, voltando ao dicionário, aquele que comete crime é criminoso, e não justiceiro. 

“Ah, mas se você for vítima de violência, não vai revidar?”. Alguém pode me questionar. Vou, sim. Chamando a polícia é o caminho constitucionalmente correto. Aliás, como mulher negra, sofro violência com uma frequência absurda: sou chamada de nomes terríveis, tenho meu direito de ir e vir violado, enfim, sofro racismo, o que não é novidade. E racismo, eu preciso lembrar, é crime. Já pensou se todo negro que for vítima de violência racial sair socando brancos nas ruas? Seria um massacre. Tão criminoso quanto o que está ocorrendo agora. Mas você chamaria de “justiça”? Por que eu chamaria de “crime”, como qualquer reação desproporcional que saia das quatro linhas da lei. 

Então, no fim das contas, para parecer haver coerência em uma coluna que junta dois assuntos aleatórios em um único espaço, eu diria que o uso de palavras e o de força para diminuir um grupo fazem parte de um mesmo contexto muito antigo, desigual e maior. Então, acho que poderíamos guardar os socos-ingleses, a vontade de bater em pessoas negras e o preconceito na mala, seja ela de qual cor for, e esperar que a justiça seja feita pela força da lei, e não dos nossos braços. 

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