A Prefeitura de Belo Horizonte está rica. É o que se conclui pelo projeto de lei 1.498, apresentado pelo executivo à Câmara, que anistia em 70% a dívida com o município dos hotéis que não ficaram prontos para a Copa do Mundo. São R$ 150 milhões que, ao que parece, não fazem falta aos cofres municipais. Revisitar essa história, repleta de trapalhadas, má fé e incompetência, ilustra bem os descaminhos da cidade nos últimos anos.
Em meados de 2010, a prefeitura aprovou uma lei que ampliou para 5 o coeficiente de aproveitamento de empreendimentos do ramo hoteleiro. Em resumo, a mudança na lei permitia construir até cinco vezes mais, no mesmo lote, caso o edifício funcionasse como hotel na Copa. Depois do evento, o hotel poderia ser revertido em apartamentos ou escritórios, tornando possível usar a Copa como maquiagem para driblar a lei de uso do solo.
Mais de quarenta empreendimentos foram licenciados nessas condições. Pouco importou se estudos demonstravam que Belo Horizonte não teria demanda para tantos hotéis depois da Copa. Em resposta aos questionamentos, o então presidente do Comitê Executivo da Copa do Mundo da PBH, Tiago Lacerda, afirmou que a cidade precisava desses hotéis e que não acreditava em excesso de oferta.
Somente dois terços dos novos hotéis foram concluídos. Ainda assim, a taxa de ocupação durante a Copa foi de apenas 60%, com mais de 6.000 leitos vazios. Hoje o setor vive a esperada crise por excesso de oferta, com seis hotéis fechados recentemente e mais de mil pessoas demitidas. Representantes do setor pedem isenção de IPTU e de tributos. Não deixa de ser irônico que aquilo que se prometia como legado pode vir a reduzir a arrecadação do município.
A história mostra que Tiago Lacerda não entendia tanto de hotelaria, mas ele era filho do prefeito. Sim, o prefeito de Belo Horizonte, Marcio Lacerda, nomeou seu filho caçula, sem nenhuma experiência de gestão pública, para o cargo de maior visibilidade ligado ao megaevento. Foi preciso uma ação do Ministério Público para tirar o rapaz de lá – algum tempo depois, em um gesto de compadrio e nepotismo cruzado, o então governador Antonio Anastasia abrigou o filho do prefeito em um cargo semelhante no Estado.
E os hotéis que nunca ficaram prontos? Não fizeram falta, mas se beneficiaram de uma lei que permitiu ampliar em muito a área construída e não cumpriram as condições estabelecidas. Agora vem a prefeitura propor a redução das multas, alegando que os valores estabelecidos na lei anterior (de autoria da mesma gestão) têm “efeito de confisco”. Segundo nota da prefeitura, “os valores são tão altos que superam o valor do imóvel e, portanto, absorvem a propriedade privada”.
Parece piada. Imagine alguém (por exemplo, um senador) que dirija sempre embriagado, em alta velocidade e com a carteira vencida, incorrendo em várias multas altas, de até R$ 1.915,40. Se a pessoa tiver um carro popular (o que não seria o caso do senador, mas tudo bem) o somatório das multas facilmente supera o valor do veículo. Alguém argumentaria que o correto seria reduzir as multas, beneficiando o infrator? A lei é para todos. Ou não?
A renúncia da PBH aos recursos fica mais acintosa em momento de contenção de gasto e frente às carências estruturais da cidade. Segundo estudo do IPEA, Belo Horizonte tem mais de 148.000 famílias sem moradia digna. Embora tenha se esmerado em viabilizar hotéis de luxo, hoje vazios, a prefeitura pouco tem feito para sanar o déficit habitacional. A atual gestão entregou apenas 3.619 unidades do Minha Casa Minha Vida, das mais de 30 mil que prometeu. Quem está no fim da fila teria de esperar mais de cem anos para ter uma casa.
Pois os R$150 milhões aos quais a PBH renuncia seriam suficientes para construir 2.400 unidades habitacionais. Se for preciso confiscar os imóveis, tudo bem: com poucas reformas eles comportam apartamentos, com a vantagem de estarem em áreas centrais. Os investidores que foram enganados pelas construtoras terão de reaver seu investimento na justiça.
A cidade que urge troca hotéis inacabados e vazios por habitações populares. É um compromisso que qualquer gestor deveria ter. Mas pelo nível e a avidez da turma que está no poder, o mais provável é que mais de 2.000 casas sejam jogadas na lixeira.