SEBASTIÃO NUNES

Dona Centopeia e a educação infantil

Redação O Tempo


Publicado em 20 de julho de 2014 | 03:00
 
 
 
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O problema de dona Centopeia não era a quantidade de patas, 111, mas sua coordenação. Do total, 60 eram destras, 30, canhotas e as restantes, 21, ambidestras. Embora parte inseparável de seu corpo, ela as tratava como filhas, como se nota no pequeno diálogo abaixo.

– Queridinhas, é preciso que vocês prestem atenção no que explico. Não é possível andar umas pra lá e outras pra cá. Assim não saímos do lugar.

– Tá bem, mamãe – responderam as 60 destras em uníssono. As 30 canhotas ficaram caladas: elas é que andavam atravessando.

LÁ ATRÁS
Tudo começou no início do inverno. Quando saía a passear com a família, percebia dona Centopeia que as patas tropeçavam umas nas outras, dificultando os sutis movimentos sincronizados que são o orgulho de tais miriápodes.

Veja você (comparação físico-anatômica):

O homem tem apenas quatro patas (não usa a boca como pata, a não ser em casos absolutamente excepcionais) e, ainda assim, de vez em quando as duas inferiores se embaraçam, obrigando as superiores a se apoiarem no chão, antes que a cara (ou o focinho) do cara o faça. É o que se chama de tombo.

Os demais quadrúpedes têm seis, não venha você me contradizer, argumentando que focinho e rabo não são patas. É evidente que boca é pata, já que é usada pelos animais carnívoros para abocanhar (o verbo já diz tudo), morder (idem) e dilacerar suas presas. Enquanto isso, evitando que visitas indesejadas interrompam a refeição, a sexta pata, o rabo, espanta mosquitos curiosos.

Provado esse detalhe insignificante, vamos ao que interessa.

LÁ ATRÁS, DE NOVO
Nos passeios matinais com a meninada, inúmeras vezes teve dona Centopeia de interromper a marcha por conta de confusões, descompassos, querelas e queixumes.

– Mãe, a 77 está me chutando! – berrava a 76.

– Mãe, a 34 me passou uma rasteira! – lamuriava-se a 33.

Imediatamente, suspendia dona Centopeia a caminhada, admoestando com brandura e suavidade as delinquentes. Chegava mesmo a apelar para a democracia:

– Vejam, crianças! O que seria de mim se, diante de ferocíssimo predador, não dispusesse de tempo para a fuga? Seria imediatamente devorada, não é mesmo? E vocês devoradas comigo, não é a lógica consequência? Portanto, comportem-se!

MAIS DO MESMO
– Mãe, a 22 me deu um tostão! – reclamava a 23.

– Mãe, a 99 passou na minha frente! – urrava a 100.

De modo que, sem alternativa, dona Centopeia foi obrigada a consultar um psicólogo. Antes de sair para a consulta, recomendou:

– Deixem que eu explico, queridinhas. Melhor vocês ouvirem apenas.

E não apenas isso: colocou as 111 patas debaixo do chuveiro, molhou-as, ensaboou-as, esfregou-as e outros oas, depois do que enxugou-as. Como estava ela mesma debaixo do chuveiro, repetiu todos os oas consigo mesma, já agora mudados de oas em ou-se, ou seja: molhou-se, ensaboou-se etc.

NO PSICÓLOGO
Com hora marcada, chegaram até que cedo, pois saíram de casa com várias horas de antecedência, podendo assim caminhar bem lentamente, o que fizeram a gosto da mãe. Satisfeita, ela agradeceu:

– Obrigada, queridinhas. Viram como é? Devagar se vai ao longe.

A secretária do doutor Miriápode, coitada, tinha apenas 19 patas, quase que o mínimo necessário para ser aceita como centopeia. Já o doutor, como puderam constatar assim que entraram no consultório, ostentava 181, número próximo do teto.

Cofiando os vastos bigodes, pois que os tinha, indagou o doutor:

– E então, minha senhora, a que devo sua visita?

BALBÚRDIA
Imediatamente, e apesar da recomendação da mãe, quase todas as patas, com exceção das ambidestras, que se orgulhavam de sua posição, puseram-se a falar ao mesmo tempo. Baixo a princípio, aos berros em seguida, à medida que as vozes se misturavam e tornava impossível sua compreensão.

Corou, envergonhada, dona Centopeia. Sorriu, magnânimo, o doutor. Vindo da sala de espera, a secretária olhou para dentro, curiosa de ver alguma amputação, porém não havia – pelos menos por enquanto – amputação alguma.

– Calem-se! – ordenou furiosa dona Centopeia. – Não me façam passar mais vergonha do que tenho passado. Peçam desculpas ao doutor. Agora!

Obedientes, as 111 patas, menos as 21 ambidestras, ou seja, as 90 patas fizeram a vontade da mãe, desculpando-se.

Silencioso o ambiente, pôde enfim a mãe dizer ao que vinham. E foi o que fez, de cabo a rabo, deitada num freudiano divã, já que doutor Miriápode era diplomado em psicologia, psiquiatria, psicanálise e parapsicologia.

RECEITA
Limpando os óculos de lentes espessas, resumiu o doutor:

– Minha senhora. Temos duas alternativas. A primeira, amputar todas as pernas canhotas, trocando-as por pernas destras. A segunda, amputar todas as pernas canhotas e destras, trocando-as por ambidestras. Com qualquer delas, eliminamos o conflito entre direita, esquerda e centro, resolvendo o problema.

Muito esperta, dona Centopeia decidiu-se por 111 pernas canhotas.

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