Algum dia ficará claro que os grandes conglomerados de entretenimento são a versão atual do clássico de George Orwell. No Brasil, o paradigma é a Rede Globo. Seu rápido crescimento e virtual monopólio da informação coincidiram com o nascimento da ditadura militar, e não por acaso. Como irmãos siameses, nasceram e cresceram juntas. A ditadura resistiu 20 anos. A Globo ainda resiste, a exemplo de outros grupos internacionais, que se diversificam para sobreviver. Até quando? Não sabemos. Desde o surgimento da internet evidenciaram-se os primeiros sinais de decadência. O rápido crescimento dos meios de intercomunicação pessoal via computador e celulares é mais um golpe poderoso no controle das mentes. Mas o império é poderoso e sobrevive. Globo = Grande Irmão? Talvez.

Grosso modo, 90% de tudo o que prega a opinião pública no Brasil deriva do que manda pensar a Rede Globo, através de seus noticiários, programas especiais e novelas. Mesmo que apenas 50% dos aparelhos estejam ligados na sua programação, talvez até menos, existem jornais e rádios aos milhares, que se encarregam de reproduzir e espalhar o pólen de suas sementes. Daí que, das capitais aos grotões, todos comentam a última trepada da estrela da moda na mais recente novela. E comentam estatísticas, com sua cabalística numerologia. E falas dirigidas com destino certo. E superexposição de alguns em detrimento de outros. Além do óbvio direcionamento político do noticiário, com intenção nem um pouco velada. Nem só de evidências se faz o controle mental de uma nação. A informação subliminar tem relevância altíssima na construção e na desconstrução do (in)consciente coletivo.


PERDENDO O RUMO
Nossa Vênus Platinada é a versão moderna do Miniver orwelliano. A versão original é lúgubre e sinistra (como sugere a ilustração desta crônica, criação de Jordan L’Hôte). A versão atual, muito mais sofisticada, não obriga ninguém a nada, obrigando todos a tudo, como escrevi antes. A seu lado, como fiéis escudeiros, milhares de publicitários, concentrados num punhado de poderosas agências, ajudam a capturar os peixes, miúdos e graúdos. Ninguém escapa. Somos todos fisgados, mais cedo ou mais tarde.

Herbert Marcuse, guru máximo da contracultura dos rebeldes anos 1960, dizia que a única maneira de escapar da armadilha é a recusa absoluta. Isto quer dizer: não se expor de maneira alguma ao canto da sereia, tapar os ouvidos com cimento, lacrar os olhos com chumbo derretido, não ouvir, não ver – em hipótese alguma.

Não existem mais sereias no mar ou iaras nos rios. Tão perigosa quanto o crack, essa epidemia moderna e irresistível é a informação truncada, a meia verdade, a distorção dos fatos, os relatos rebrilhando de números fantasiosos, e as estatísticas que não comparam, e portanto não medem. Não era muito diferente o Miniver.


MINISTÉRIO DA VERDADE
Enorme, ficava num prédio com 300 metros de altura e 3.000 salas acima do nível do solo, sem contar o que existia abaixo, espaço monstruoso no qual se queimavam documentos imprestáveis, ou seja, tudo o que fora verdade e deixara de ser.

Nas paredes, os três slogans que sustentavam o poderio do Grande Irmão:
“Guerra é Paz”, “Liberdade é Escravidão”, “Ignorância é Força”. São contraditórios, claro, mas por isso mesmo são definitivos. E indestrutíveis.

Nosso tempo não permite dicotomia. Nem verdades absolutas. Guerras promovidas pelos EUA na busca frenética de petróleo passam por intervenções democráticas em favor da paz. Para uma ínfima minoria pensante, ficam claros os interesses em jogo. Mas para a imensa maioria, manipulada pela informação midiática, fica a versão produzida para consumo das massas ignorantes (ou quase). Guerra é paz, claro.

Milhões de africanos escravizados pela AIDS são livres para morrer, enquanto Bill Gates torra toneladas de dólares na prevenção da doença, sem resultado algum, a não ser o de simular humanitarismo no desconcerto mundial. Liberdade é escravidão, lógico.

Quanto menos se conhece da vida e do mundo, melhor. As tremendas discussões no Brasil em nome da educação deixam expostas as facções em conflito. De um lado, governos, a nível federal e estadual, que realmente lutam obstinadamente para promover a educação. Do outro, governos estaduais e municipais (na imensa maioria) que sofrem de diarreia só de pensar numa população de eleitores esclarecidos e exigentes.

Ao lado dos que lutam realmente pela educação, temos o governo federal, o governo do Ceará, a prefeitura de Belo Horizonte – e alguns outros gatos pingados. Do lado dos que se opõem à democratização da educação, estão o governo de Minas e a maioria dos governos estaduais, sem contar pelo menos 90% dos prefeitos, eleitos e reeleitos pela ignorância. Por isso mesmo, ignorância é força. Através da ignorância, oligarquias se perpetuam, durando décadas e atravessando gerações. Eles têm a força, é óbvio.


VERDADE E MENTIRA
Enquanto isso, a população da moderna Oceania (controlada pelo Grande Irmão Global e o Partido Interno midiático) é dominada pela desinformação.

Na antiga Oceania, todo dado que se tornava obsoleto – ou seja, que contrariava a verdade oficial – era descartado e substituído por algo novo, que expressava a nova posição do governo central. Para isso servia o Miniver. Para reescrever a história, empregava milhares de pessoas, funcionários exemplares e estupidificados, membros do Partido Externo.

Mas não apenas isso. O Miniver, além de fabricar notícias e atualizar informações, verdadeiras ou não, cuidava do entretenimento, das artes e da educação. Mais ou menos o que faz entre nós a Rede Globo, com seus tentáculos multiplicados aos milhares pela mídia que lhe repercute as “informações”.

E o que fazem os gigantescos conglomerados da mídia transnacional, responsáveis pelo cinema, pela música, pelos jogos e pelos modismos.

Estamos todos perdidos numa floresta gigantesca. Pelo menos estivemos, entre as décadas de 1970 e 1990. Trinta anos. Tempo suficiente para que toda uma geração – e metade de duas outras – sofresse lavagem cerebral em massa e se tornasse imenso rebanho de carneiros, dominados pelo egoísmo, pelo individualismo e pelo consumo.

Aos poucos, e muito lentamente, o sol volta a brilhar no horizonte de nosso futuro. O otimismo é uma virtude resistente. Nasci otimista, e certamente morrerei otimista.