Flanava pelo quintal esbelta galinhad"angola quando, passando pelo galinheiro, vislumbrou um ninho de notáveis dimensões, novo e cheiroso, fornecido de duas dúzias de ovos de multiforme configuração.
Olhou à direita, olhou à esquerda e, não vendo qualquer galinha, pata ou perua aparentando ser proprietária de tal tesouro, deitou-se muito à vontade sobre os referidos ovos, ajeitando-os com as penosas asas, de modo que se aquecessem por igual.
Na frente, ajeitou dois ou três com o bico e, à ré, mais alguns com a penosa cauda. Não sendo marinheira de primeira viagem, sabia que uma boa safra de filhotes só é possível com temperatura constante e uniforme sobre todos os candidatos.
Deitouse, pois, e ali ficou, futura madre, sem qualquer tipo de incômodo, fosse chuva, sol ou frio, uma vez que o ninho se encontrava bem abrigado debaixo de sólido telheiro, por sua vez abrigado dentro do galinheiro.
De vez em quando, para conservar o necessário calor e suprir carências nutricionais, ausentava- se durante alguns minutos, quando engolia caroços de milho, roliças minhocas, insetos moribundos e folhagens diversas, além de prover-se de bastante água.
Assim, irrigadas as entranhas e reabastecida a máquina energética e regenerativa, deitava-se de novo, confortavelmente abastecida de hidratos de carbono, proteínas, lipídeos, sais minerais e vitaminas.
VAI-SE A PRIMEIRA SEMANA
Sol, lua e estrelas revezaram-se metodicamente em cumprir os desígnios do Senhor, criando as necessárias alternâncias entre brilho e bruma.
À luminosa alvorada sucedia a radiosa manhã, depois do que fulgurava o sol por algumas horas, até que a melancolia vespertina cobrisse a terra com sua algaraviada de trinados, piados, miados, latidos, mugidos e demais manifestações de pesar pelo fim do dia que, consolado pela solidariedade de todos os viventes, despedia-se amavelmente, ao mesmo tempo em que cedia lugar à voluntariosa noite, com seus pipilares, zumbidos, queixumes e alaridos diversos, todos reveladores de que mais um ciclo solar estava encerrado.
Enfim, chega de parnasianismo, voltemos ao realismo. Dormindo e acordando, cochilando e sonhando, mal percebeu nossa galinha-d"angola que a primeira semana já era. Engordara um pouco, o que era bom para os ovos e seu desempenho, de modo que tudo permanecia como dantes no quartel de Abrantes.
VAI-SE A SEGUNDA SEMANA
E também a terceira, já que o tempo é um burro de viseira, sempre dividido em horas, minutos e segundos, mesmo que sábios antigos e modernos tenham provado sobejamente que ele, o tempo, não passa de invenção de desocupados pra vender relógio.
De qualquer forma, existindo ou não, o tempo passou e, para alegria geral de parentes, amigos e vizinhos, começaram as cascas a trincar e, trincando, a exibir biquinhos pelos buraquinhos de ovos, ovinhos e ovões.
O GRANDE DIA BATE À PORTA
" Que lindinho, é a cara da mãe! " exclamou uma pata vendo apontar das cascas um molecote implume, enrugadíssimo e de olhos grandes.
" Que fofucho, é a cara do pai! " decretou uma perua intrometida, que nem ao menos conhecia a procedência dos ovos, reparando numa gorduchinha taluda que abria espaço entre cacos fedorentos de ovo choco.
Enfunando as penas, ia nossa galinhad"angola se deliciando com tais mimos, que à mãe deslumbrada todo elogio é verdade e toda mentira é gozosa.
E assim, entre exclamações de espanto e alegria de vizinhos, amigos e parentes, todos puxa-sacos e interesseiros, nasceram vinte e três criaturinhas, totalmente diferentes umas das outras, como era de se esperar de ovos de tão variada configuração.
Havia de tudo naquela safra de nascituros: pato, peru, perdiz, pombo, pavão, pintassilgo, papagaio, peito-roxo, pelicano, perereca...
FALA A VOZ DA SABEDORIA
" Alto lá! " gritou dona coruja, que de longe via de olhos arregalados aquele desfile inusitado de aves em "P", até não se conter quando, de um ovo particularmente brejeiro e molengo, surgiu saltitante uma verdejante perereca arborícola. " Alto lá! " repetiu dona coruja.
" Tudo bem que tamanha variedade de ovos só poderia mesmo resultar em tal omelete de disparidade aviária. Mas uma coisa são aves começadas com a letra "P" e outra coisa bem diversa é nascer uma perereca verde nessa disparatada ninhada. E só por que também começa com "P""
REUNE-SE O STFA
Convocado pelo galo garnisé, que apesar da baixa estatura era a máxima autoridade naquele galinheiro, reuniu-se o STFA (Supremo Tribunal Federal Avícola), com o intento de resolver o inusitado problema que, posto nos devidos termos por dona coruja, se reduzia à seguinte equação: Dada a ninhada X e a chocante Y, qual é o significado de Z"
Sendo X as duas dúzias de ovos, Y a galinha- d"angola e Z a resultante, ou seja, os vinte e três filhotes gerados, todos eles indivíduos de espécies iniciadas com "P".
Estavam nessa querela os nobres jurisconsultos quando estalou o último ovo, vigésimo quarto da ninhada, do qual ninguém se lembrava mais, saltando dele um DPFA (delegado da polícia federal avícola), todo emplumado e armado até o bico, dando imediatamente voz de prisão aos presentes, magistrados, dignitários, parentes, vizinhos, amigos, mãe e nascituros.
Que tiveram, sem exceção ou regalia, prisão temporária decretada, além de quebrados os sigilos bancário e telefônico. Não deu em nada, claro.
Dias depois flanava pelo quintal a galinha-d"angola com a chusma de filhotes, ou seja, pato, peru, perdiz, pombo, pavão, pintassilgo, papagaio, peito-roxo, pelicano e perereca, além dos doutos membros do STFA e do delegado, que se deixou cooptar por alguns sacos de milho bem graúdo, refletindo filosoficamente: " Tratando-se de plenipotenciários, mais vale concretismo que abstracionismo.