Quando cheguei a Belo Horizonte, em 27 de maio de 1976, o clima era diferente. Passei a morar numa chácara em Ibirité no ano de 1977. A paisagem era incrível, havia muita mata e uma represa de águas cristalinas. Animais de todas as espécies apareciam no quintal: raposas, quatis, tatus, criaturas parecidas com tartarugas, micos e até veadinhos.
As madrugadas eram gélidas. No mês de junho, várias vezes se registrava geada, e aquela manta branca sobre a grama derretia com os primeiros raios de sol. Para tomar banho, aquecia-se o ambiente queimando álcool numa bandeja, e à noite eram necessários dois cobertores de lã para dormir. Em 1982, deixei Ibirité e mantenho uma lembrança feliz.
Com o desmatamento e a ocupação urbana, a temperatura foi subindo no entorno de Belo Horizonte. O clima se transformou.
No final de abril e no começo de maio deste ano, a temperatura sofreu uma queda notável e me fez lembrar dos anos 70, quando as noites eram mais frias nesta estação. Nas últimas semanas, a luminosidade diurna tem sido mais intensa, e o sol brilha como nunca. Parece consequência da diminuição de uma camada de poluição, de finas partículas de CO2, que há tempos encapa o planeta.
Não é por menos. Com milhões de veículos parados pela pandemia no mundo inteiro, as estrelas brilham mais, a lua ilumina a escuridão, o ar desce mais suave aos pulmões. Os automóveis repousam e deixam o planeta em paz. As mortes economizadas nas estradas provavelmente empatam com aquelas da pandemia. Em 2018 e 2019, foram 112 mil mortes por mês nas vias terrestres no mundo, 3.400 por dia. Nem por isso, porém, usamos todos os dias nossos veículos atando o cinto de segurança; aceitamos, assim, o risco, que mata 1,35 milhão de indivíduos a cada ano. A humanidade se acostuma às catástrofes e aprende a conviver com elas.
O fenômeno de descontaminação está, provavelmente, no seu auge. Retornaremos, em breve, ao “normal” aquecimento global, a respirar venenos. O mundo rico e “civilizado” continuará a ignorar que morrem de malária 430 mil pessoas por ano nos países pobres – e que 300 mil vítimas são crianças com menos de 5 anos. Continuará insensível aos mais de 7 milhões de mortes que resultam, segundo a OMS, do tabagismo – sendo cerca de 1,2 milhão o total de vítimas não fumantes expostas ao fumo passivo. Continuará a humanidade a beber álcool, apesar de 3 milhões de pessoas morrerem anualmente por seu uso nocivo. O alcoolismo é responsável, segundo relatório da OMS, por uma morte a cada 20 ocorridas no planeta.
Vale prestar atenção a este momento de susto “civilizado” e irrepetível até a próxima pandemia – ou até que a Covid-19 se confunda com a paisagem mundial. Precisamos, neste momento, registrar a diferença do clima, que, antes sutil, se faz mais evidente a cada dia. Especialmente os jovens, que da década de 70 não participaram, e aqueles que se esqueceram do passado. Guardar esse exemplo será valioso para todos e para o planeta para entender que somos, de verdade, uma aldeia global.
Imaginava que alguém, entrasse no assunto do clima, que sentisse a sensação que experimento nestes dias. Aquela manta de poluição, aparentemente invisível, precipitou sem ser reposta com a mesma intensidade e permitiu o resfriamento do ambiente. Como contribuição, temos a diminuição abrupta de combustão de petróleo, que retornou, nos últimos meses, aos níveis mínimos de algumas décadas de século passado. Filas de navios petroleiros parados no mar, sem ter onde descarregar. Poços de extração deixaram de produzir, as refinarias desligaram suas torres, os altos-fornos deixaram de queimar carvão para fundir ferro. Cotações de commodities energéticas e metais derreteram.
Não é o coronavírus que vai parar o planeta. Certamente, haverá um retorno da produção, e não sentiremos mais o ar puro de hoje, a seiva noturna mais intensa, a falta de ruídos urbanos. A pandemia, como todos os males e sofrimentos, permite reflexões e experiências únicas.
A humanidade, tirada por algumas semanas da sua atividade frenética, enclausurada, pode sentir a necessidade, mesmo produzindo, de agir corretamente para evitar muitos dos males que nos afligem. Com pequenos esforços, as águas serão mais limpas, o ar ficará puro, o céu será descontaminado. Estamos recebendo uma lição de qualidade de vida.
Embora seja pouco provável, auspicamos que as nações não percam tempo para tomar medidas sérias, urgentes e profundas para preservar o planeta.