A jornalista Ana Holanda sempre sentiu fascínio ante os cadernos de receitas de família. “Mais do que um modo de fazer, revelam a história daquela família por meio dos pratos registrados”. Não por outro motivo, fez questão de criar o seu – e à moda antiga, ou seja, escrito à mão. “Me esforço para ‘alimentá-lo’, porque acho que a tendência, nos dias atuais, é buscar uma receita no Google ou salvar em pastas no computador, que um dia se perdem, se apagam”, justifica.
Sim, a ideia dela é, de fato, criar um documento físico, palpável, que possa ser passado a outras gerações. “Um registro, de modo que, quando eu não estiver mais aqui, (as receitas) possam ser produzidas. E que, por meio do sabor, dos aromas, da reprodução do prato, eu, de alguma maneira, ainda me faça presente. Acredito muito nesse poder que a comida tem: de trazer à tona as lembranças mais queridas”, explica ela, nome por trás do projeto “Minha Mãe Fazia”, em curso desde 2015, no Facebook. Neste final de semana em que se comemora o Dia das Mães, a cultura dos cadernos de receitas também reverbera um laço que vai além das palavras grafadas. Ainda que a memória afetiva atrelada a esse universo possa acabar resvalando em lágrimas.
Ana, por exemplo, admite que o gosto da pitanga sempre vai remetê-la à avó, Esther, já falecida. E foi também ao citar a avó que a chef especialista em nutrição saudável Juliana Muradas interrompeu a entrevista para limpar as lágrimas. No caso, ela colocava em repasse os defumados (como a morcila) que a progenitora tinha o hábito de preparar.
Foi ainda criança que Juliana – que hoje toca o projeto Inhame Inhame, direcionado à nutrição infantil – se viu interessada em acompanhar o processo de feitura das refeições. “Ela (avó) acabava me deixando mexer na panela, observar o ponto...”, rememora a chef.
Ao se enveredar sozinha pela cozinha, Juliana começou a colecionar receitas – e, tal qual Ana Holanda, a recortar as que vinham em latinhas de leite condensado. E veio o caderno, que conserva até hoje, mesmo com as folhas se desprendendo e as inequívocas manchas de gordura. “Como esses cadernos ficam na cozinha, sempre vão ficando meio sujinhos”, ratifica Ana, que, no seu caso, costumava, junto à irmã, passar os cadernos da mãe a limpo.
Reproduzi-las em casa não foi tarefa tão hercúlea quanto conseguir a receita de suflê de milho da mãe, Lígia. “Foi bem trabalhoso, ela nunca foi de contar seus segredos”. O temperamento da genitora, aliás, sempre foi mais retraído. “Minha mãe não era muito de falar sobre sentimentos. Depois de muito tempo, entendi que a comida era a maneira de ela demonstrar o que sentia. Ao cozinhar, colocava, ali, todo amor, afeto e carinho que tinha por nós. Hoje, entendo que um bolo não é só um bolo. É amor. Uma torta, um assado, podem ser afeto...”.
Nonna
Em meio às páginas, estão anotações, folhas com dicas e, claro, as receitas – escritas pela mãe, pela avó, pela tia e por amigas de família. “Adoro esse livro!”, diz Angela Mela, referindo-se à peça afetiva que ganhou das mãos do pai, e da qual consta os segredos do doce preferido da família toda, a Crostata di Ciliegie, torta de geleia de cerejas pretas. Nascida no Rio, Angela já há algum tempo reside em Roma, onde mantém o blog italianoincucina.it – que vale dizer, tem opção para versão em português.
Não bastasse, a editora Disal publicou, por aqui, o livro “Emoções na Cozinha”, que apresenta o fruto do projeto dela de contar a história de famílias inteiras, de diversas regiões da Itália, através das receitas de suas nonne (avós). São os netos a narrar as lembranças em volta da mesa, em festas, jantares ou lanches. No fim de cada relato, um quadro faz uma espécie de árvore genealógica, acompanhado do passo a passo ilustrado das receitas. “Talvez a receita da neta mais jovem do livro, a Martina, tenha sido a que mais me emocionou”, diz Angela, referindo-se à de “spaghetti al tonno”.
Ana Holanda e Juliana Muradas também se enveredaram pelo mercado editorial. No caso de Ana, fruto direto da página no Facebook, que começou de maneira despretensiosa. “A ideia era reunir, em um lugar, os pensamentos que me habitavam enquanto cozinhava. Como a escrita é meu território mais confortável, onde me encontro, comecei a escrever sobre as reflexões que nasciam enquanto batia um bolo, preparava uma carne de panela, cortava legumes. Textos que misturam minhas memórias afetivas ligadas a comida, as conversas que tenho com meus filhos enquanto cozinho ou ao redor da mesa, os diálogos que tenho comigo mesma enquanto preparo algo...”, enumera. “São textos sobre comida simples, relações, sentimentos. Enfim, sobre a vida, só que entremeados de sabor, aromas. E, ao final de cada texto, sempre coloco a receita. Hoje, a página tem quase 20 mil seguidores”.
Já Juliana acaba de lançar “Comida Escolar”, direcionada ao público infantojuvenil – que ela, por ser mãe de gêmeos, conhece bem. Aliás, Luiza e Pedro, 12, já se arriscam na cozinha, no preparo das receitas de família, como o bolo de cenoura ou a broa de fubá. A cadeia geracional, no caso, abarca a mãe de Juliana, Marina Muradas. No dia da entrevista para o Pampulha, as duas trataram de preparar o bolo de cenoura da família (delicioso!), embora reconheçam que, com raras exceções, preferem passear pelo universo dos pratos salgados. Marina, por exemplo, se esmera na feitura da bacalhoada e na feijoada. “Mas não é aquela na qual você não sabe o que vem na concha”, frisa ela, alinhada com a convicção da filha, de que a alimentação deve ser tratada de forma educacional em casa. “Não é a criança estabelecer que não quer verduras. Não existe essa opção, mas o que pode ser negociado é ter uma alternativa”.
Histórias têm visibilidade
A pesquisadora Juliana Venturelli herdou nada menos que dois cadernos de receitas: um da avó e outro da tia-avó, ambas do lado materno, além de folhas soltas com anotações. “No caderno da minha única tia-avó viva (Nilda, 90), há receitas muito curiosas, como o ‘pudim de esperar marido’”, narra a mineira de Cruzília, criada em São Lourenço e radicada no Rio de Janeiro desde 2006. Detalhe: a receita foi escrita pelo marido de dona Nilda.
Formada em gastronomia, Juliana declinou de ser chef para abraçar a causa da memória atrelada à cozinha de uma maneira muito especial: seu trabalho de conclusão do curso de pós-graduação em Memória Social, na UniRio, foi “Narrativas Culinárias e Cadernos de Receitas do Sul de Minas: Da Memória Oral à Memória Escrita”.
Para tanto, percorreu, junto à artista visual Aline Motta, 11 cidades do “Caminho Velho”, atravessados pela Estrada Real: Maria da Fé, São Lourenço, Baependi, Cruzília, Serranos, Aiuruoca, Minduri, São Vicente de Minas, Madre de Deus, Santo Antônio do Porto e Pouso Alto. No cômputo geral, foram 52 entrevistas, em casas, restaurantes e afins. E o que a motivou? “A saudade de Minas de um lado e, de outro, a dificuldade de me enquadrar na profissão (gastronomia) que preza um rigor técnico e estético que a mim não toca o coração”.
Sim, Juliana gosta da simplicidade das cozinhas. “Da comida feita em fogão à lenha, de ouvir as histórias que são contadas ali, na beira do fogão. Daí veio a chance de seguir a trajetória acadêmica, onde estou desenvolvendo estudos sobre as transmissões orais das receitas e agora, no doutorado, como essas receitas familiares circulam entre jovens que navegam nos meios digitais”.
Entre as questões sobre as quais ela vem se debruçando, estão: Onde moram e como vivem esses jovens? O que comem? As receitas estão sendo transmitidas como antigamente? Os jovens preservam e mantêm essas receitas? “São exemplos de perguntas que pretendo responder na minha tese”.
Mas tem mais. A pesquisa de mestrado vai embasar o livro “Lenha no Fogão, Entre Prosas e Receitas”, no prelo. “A ideia surgiu da necessidade de uma amiga, a designer gráfica Renata Vidal, apresentar um projeto para a sua pós-graduação. O livro não tem a escrita acadêmica. É uma linguagem em prosa, e conta como aconteceram os encontros e também as histórias das entrevistadas”.
Roteiros, sites, livros
Não bastasse, em setembro de 2016, Juliana lançou o “Roteiro Gastronômico Lenha no Fogão: Entre Prosas e Receitas”, no Degusta de São Lourenço. “O objetivo é adentrar o universo caseiro e familiar, onde os visitantes tenham a experiência viva de uma receptividade mineira, além de conhecerem as histórias das cozinheiras e aprenderem algumas receitas em oficinas”, destrincha. As saídas ocorrem normalmente em feriados (confira Facebook lenhanofogao).
Outro nome que desponta quando o tema é esse universo é o da jornalista Mariana Weber, que toca o site “O Caderno de Receitas”. Mariana guarda consigo os cadernos da mãe e da avó materna, mas recentemente também recebeu a incumbência de ser a guardiã dos cadernos de alguns amigos.
“No site, também costumo entrevistar chefs e outras pessoas sobre receitas que marcaram a memória”, diz ela, lembrando que o projeto foi também uma forma de estreitar contato com a mãe. “Tornar mais frequentes as nossas conversas, por telefone, pelo menos”. Outra motivação? Cozinhar para o filho, hoje com 4 anos, receitas que foram marcantes para ela. “Uma curiosidade é que o caderno da minha mãe e dois dos da minha avó materna estão, hoje, no Museu da Imigração (SP), como parte da exposição ‘Migrações à Mesa’, que reúne cadernos de famílias de diversas origens. Minha avó tinha um avô espanhol”, explica Mariana, que também toca um livro sobre receitas de família e outras “comidas com história”. “E quero ajudar outros a salvar seus pratos de família, em um serviço de pesquisa e organização de receitas e histórias. No último Dia das Mães, várias pessoas me escreveram sobre a comida das suas famílias. Foram relatos emocionantes”, afiança.
Uma das receitas da sua família que mais a apraz é a torta de banana com farofa crocante. “Minha mãe fazia para festinhas, como as da minha escola. Está na minha geladeira agora”, diverte-se ela, que também cita a mousse de maracujá da avó materna, com crocante de caramelo com nozes e calda de maracujá. “E tinha um biscoito que minha mãe fazia quando eu era adolescente. Tive muita dificuldade para achar araruta para fazê-lo!”, conta
Histórias entre risos e lágrimas
Estudante de jornalismo, Michaela Machado e a mãe, Carolina, vêm de uma família que guarda as receitas na cabeça. “Minha mãe gosta de testar as que saem nos jornais. E sempre dá certo da primeira vez! Daí, ela continua fazendo ‘de cabeça’”, jura Carolina, lembrando que a família gosta tanto de cozinhar, quanto de se deliciar com o que faz, seja no fogão a gás ou à lenha. “Sei que sempre será divino. Ah! E todos da família já nascem com disposição para as degustações. Tanto que Michaela não falou uma primeira palavra, mas uma frase inteira: ‘Me dá batata, dá!’”, ri.
Lúcida e articulada aos 82, Dona Rosa Ribeiro, de Paraisópolis, é uma referência, e tem o site “Dona Rosa Mineirices”.
Há pouco tempo, as receitas viraram livro, uma surpresa dos filhos. Curioso é que Rosa aprendeu a cozinhar adulta, quando tentativas frustradas de agradar ao marido a levaram às lágrimas – caso da sopa de macarrão, que grudou toda. Mas foi um entrevero com a cunhada o ponto determinante. “Aí virou uma questão de honra”, diz, bem-humorada. O primeiro caderno, conta, está preto, de tanto uso. Mas, nesse caso, ninguém se importa com a estética.