“Não é sobre ser gorda. É sobre o peso de se estar acima de um peso”. A frase é um trecho da música “Carta à Boa Forma”, da cantora paulista Anná. O refrão propõe a aceitação em meio a uma letra que desafia: “Você sabe o que é olhar para o espelho e desejar que aquele corpo não fosse o seu?”.

A cantora mineira Ana Cristina viveu isso na infância. “Sempre fui a menininha acima do peso e de cabelo crespo, portanto, alvo de implicâncias – na época não se falava bullying”, lembra. E não, os alertas não tinham a saúde da menina como foco. “Era a imagem que preocupava”. Nos Natais, ela ouvia os apelidos habituais, como “bujão de gás”. E, claro, sofria.

Ana é exemplo de um preconceito que se tornou mais falado nos dias atuais, embora já esteja em repertório há tempos: a gordofobia, preconceito ou intolerância contra pessoas gordas que não poupa nem famosas como a cantora Rihanna. Basta digitar o nome dela no Google e já vem o preenchimento automático: “Rihanna gorda”.

Mais que afetar a autoestima de quem sofre com os ataques de preconceito, a gordofobia tem efeitos mais graves do que se imagina. Eles podem ser sentidos na vida emocional e profissional da pessoa obesa. Uma pesquisa da Universidade Cornell aponta consequências especialmente para as mulheres. As obesas em geral têm 50% menos chances de frequentar o ensino superior, 20% menos chances de se casar, sete vez mais chances de ter depressão e recebem 9% a menos que mulheres não obesas.

A atriz global Mariana Xavier foi vítima recente do preconceito: ao postar uma foto de calcinha e sutiã, “ganhou”, de uma internauta, o emoji “baleia”. E devolveu: “Hoje sou mais gorda, mas também mais amada, espiritualizada, bem-sucedida, mais realizada, mais bonita e feliz”. Mas nem todos têm esse jogo de cintura – em particular, se são crianças. “Essa cobrança na infância é muito cruel”, reafirma Ana Cristina, acrescentando que, no seu caso, ninguém a defendia. Na escola, chegou a apanhar por ser gordinha. Mas as armas mais frequentes eram mesmo as palavras. “Diziam que não ia me casar nunca. Aí, entrei no modo negação (de si), aceitei isso e virei ‘vela’ das amigas. Hoje, pelas fotos, vejo que nem era tão gorda como me via. Por isso gosto de bater nesta tecla, a de poupar as crianças”.

A psicóloga Fabiana Cerqueira endossa: “A infância, sabemos, é um momento de formação, na qual as experiências vivenciadas podem deixar marcas no decorrer da vida. E alimentar essa coisa do padrão magro, vamos colocar assim, pode ter consequências trágicas, nefastas”. A Universidade da Pensilvânia, aliás, divulgou, no início do ano, um estudo que atesta que o preconceito sofrido pelas pessoas gordas é mais maléfico à saúde delas do que a obesidade em si. Além disso, os efeitos da gordofobia também podem ser sentidos na vida emocional e são capazes de abalar o psicológico.

“Gorda”/“Grosse”

Anná enfatiza que compôs uma outra canção sobre o tema, “Grosse” (“gorda”, em francês”). “Fala da minha experiência de criança gorda na aula de balé, um ambiente muito hostil”, diz ela, lembrando de frases como “Corpos gordos não podem usar sapatilha de ponta, meia calça clara ou collant apertado”. “Nem dançar de verdade”.

Nas telas e papéis, a intolerância também se reverbera. “As mulheres que nos mostram não são reais. Para começar, não existe celulite nem pelos em capas de revistas. Tudo isso desencadeia um efeito borboleta de baixa auto-estima. E, daí, a busca por corpos irreais”.

Busca que, acrescenta Anná, nunca chegará ao fim. “Porque sempre tem que perder um pouquinho na barriga, ganhar um pouco no peito, e por aí vai”. Com “Grosse”, Anná busca, pois, amenizar essa pressão. “Ou pelo menos mostrar que ela existe e que a gente não precisa se submeter a ela”.

É um processo, salienta, de dentro para fora. “De vencer as pressões externas para descobrir o que realmente é bonito dentro de cada uma. Não existe um padrão de beleza. Existe o seu padrão, você é linda do jeito que é e ninguém mais vai ser igual a você. E não precisa querer ser igual a ninguém”, diz.

Ana Cristina ressalva: “É claro que incentivo a vida saudável e a prática de atividades físicas”. Mesmo caso das influenciadoras Larissa Andrade,19, e Ana Luiza Palhares, 22. Larissa, por exemplo, não bebe refrigerantes nem gosta de frituras. Ana Luiza faz academia, zumba e tenta manter a alimentação regrada. As duas estão com os exames em dia. Aliás, segundo o Ministério da Saúde, cerca de 30% dos obesos podem ter perfil metabólico e cardiovascular dentro da normalidade.

Estranhamento

Há 15 dias, Ana Cristina percebeu o estranhamento de uma criança diante da informação de que ela era cantora. “Ela me contou que também queria ser uma, mas que a mãe havia dito que, para tal, teria que ser magra. Ando vendo crianças de 7, 11 anos, preocupadas em emagrecer”.

A cantora, diga-se, resolveu perdoar as alfinetadas familiares do passado – embora confesse, de início rindo, que há membros que evita encontrar. “Fiz terapia, mas há feridas profundas, que não curam”, diz, agora entre lágrimas.

Fabiana adverte que o tipo de crítica que Ana Cristina vivenciou afeta diretamente, a autoestima. “Se a criança está acima do peso, e se isso é apontado como ruim, ela vai se enxergar como uma pessoa ruim, que está fazendo errado”. O que pode ter desdobramentos. “A formação dessas crianças pode ficar abalada. E outro ponto: que relação ela vai estabelecer com a comida?” E essa resposta, diz, se dará lá na frente, podendo redundar em casos de anorexia, bulimia e até obesidade mórbida.

‘Preciso ir à praia de burca?’

Pode parecer coincidência o fato de haver dois blogs mineiros que levantam a bandeira da auto-estima e que, no nome, fazem menção a uma das princesas mais evocadas no imaginário coletivo: Cinderela. Mas, bem: é uma provocação.

Aos 19 anos, a estudante de jornalismo Larissa Andrade é o nome por trás do Falsa Cinderela. Já Ana Luiza Palhares, 22, que atua na área de marketing, comanda o Cinderela de Mentira. As duas dispensam eufemismos: estão, sim, acima do peso. E defendem veementemente o respeito à aceitação do corpo.

“Brinco que sou uma Cinderela de tênis”, diz Ana Luiza, que, como Larissa, também disponibiliza vídeos na web. Foi justamente um desses que deu impulso à sua carreira na blogosfera. “Era sobre os clichês que toda gorda ouve, como: ‘com um rosto tão lindo, por que não emagrece?’. Após ele, recebi um monte de emails ou mensagens inbox de pessoas que estavam acima do peso e não se aceitavam”.

Ana Luiza pontua: “Veja, é um direito da pessoa não estar satisfeita com seu corpo, mas é preciso ver de onde essa insatisfação está vindo. Se está se comparando a outras pessoas, se busca um padrão imposto pela mídia...”. Aliás, vale dizer que Ana costuma andar na contramão de padrões impostos. “O que a moda diz para não usar, vira inspiração e coragem”. Caso do maiô com fundo claro que ela postou. “Teoricamente, eu nunca poderia usar. Mas se formos pensar assim, quem está acima do peso tem que ir à praia de burca?”, problematiza.

Mas que fique claro: como todo ser humano, Ana Luiza alterna seus dias de glória com os revezes. “É uma construção. Mesmo porque, vivi mais de 20 anos me achando horrível”, diz ela. 

Falsa Cinderela

Com quase 50 mil seguidores no seu canal, o Falsa Cinderela, Larissa conta que, à época que o criou, esse universo ainda não estava descortinado. Ela mesma não tinha uma referência. “Hoje, é lógico que ainda aparecem comentários maldosos. Mas do tipo: ‘você é gorda’. Ora, isso é um fato! Não me ofende. Sou gorda, ponto. Mas os elogios são incríveis. Todo santo dia recebo directs no Instagram, e não estou me fazendo de famosinha – nem tenho tantos seguidores assim”.

Larissa labuta para que, solidificando a auto-estima de outras garotas que não se enquadram nos padrões da sociedade, essas não sofram episódios como o ocorrido quando planejava a sonhada festa de 15 anos. “É um clichê, mas eu queria, e meus pais apoiaram – mesmo porque, quando jovem, minha mãe não tinha vivido isso”. Qual não foi a surpresa ao ouvir uma colega de escola comentar: “Imagina aquela gorda usando corpete de debutante?”.

“Fiquei muito mal e na hora quis cancelar tudo”. O difícil foi explicar à mãe a mudança de planos. Ela até tentou alegar que preferiria fazer uma viagem, mas não convenceu a genitora, que, claro, compartilhou a decepção quando o real motivo veio à tona. No dia do aniversário, porém, Larissa voltou atrás e decidiu sim, comemorar. Com corpete e tudo a que tinha direito. A festa, um mês depois da data oficial, teve um componente surpresa: a presença da garota que detonou o conflito interno com seu comentário infeliz – ela foi de penetra.

Movimentos

A psicóloga Fabiana Cerqueira lembra que a internet acentuou a exposição dos corpos e, em decorrência, a busca pelo corpo dito “perfeito”. “Que seria o magro, o jovem”. Mas ela salienta que estabelecer uma ligação direta desse corpo com um padrão de saúde é um grande equívoco. “Se a pessoa está acima do peso, tem-se uma ideia de que ela não cuida da sua saúde, o que alimenta esse imaginário coletivo do corpo magro, o que deve ser alcançado”.

Ao mesmo tempo, ela ressalta que a sociedade vem dando mais espaço a outras belezas fora dos estereótipos vigentes. “Caso dos desfiles do recente São Paulo Fashion Week, com vários padrões de beleza na passarela”. Mas ela adverte: “A gente está num momento de passagem. Certamente, não vamos colher os resultados agora. Mas vamos ver o que vai ser disso”. Os avanços, entende, ainda são poucos. “Mas não tem como desconsiderá-los. Acho que é uma porta que está se abrindo e que está dizendo de algo muito interessante”, finaliza.

'É bem difícil sair ilesa’

A questão da gordofobia é tão latente que a cineasta Vanessa Del Negri decidiu transpô-la para o cinema. “Gorda”, curta de caráter documental, está em fase de edição. O filme aborda o preconceito com um viés documental por meio de cinco meninas “que convivem com o fato de serem gordas, ou que se tornaram com o tempo”. “Mas não vitimizamos elas. Todas entendem que o lugar delas na sociedade é esse e lutam para conseguir o respeito e a dignidade que merecem ter como ser humano”

Vanessa diz que as meninas falam com propriedade da questão. “Tem a Rachel Patrício, por exemplo, que desenvolve projeto referente a inclusão, como macas nos hospitais e cadeiras especiais em restaurantes”, lista.

Aos 32 anos, a jornalista Jéssica Balbino sabe bem desses desafios. Ela conta que todos os dias nada no mar de ódio e preconceito contra os gordos. “É bem difícil sair ilesa no final do dia. O que me deixa cansada é justamente essa tentativa de deslegitimar a fala, a luta, a causa”

Quarta-feira passada, Jéssica viu, no Facebook, um vídeo de uma marca de comidas e materiais fitness que trazia a representação de uma mulher gorda, nua. “Como uma massa amorfa de gordura. Nele, a figura aparece dançando em meio a batatas-fritas, com uma pizza enfiada no ânus, entre outras coisas que apenas ridicularizam a mulher fora do padrão”, indigna-se.

Jéssica decidiu denunciar a iniciativa. “E qual não foi a surpresa ao ver que a maior parte dos comentários fala de vitimismo, mimimi...”. Para ela, a sociedade nega as pessoas gordas todo o tempo. “Quantas protagonistas gordas você já viu em séries, filmes e/ou livros e que tivessem uma vida normal, sem que o foco fosse sobre o corpo delas?”, desafia. “É como se você não pudesse existir”, prossegue. “E a sociedade reforça isso não fazendo roupas que te sirvam, bancos que te aguentem, cintos de avião, catracas nas quais você passe. Grita o tempo todo que ou você é magra ou tem que viver reclusa”.