Reportagem

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Nadando contra a corrente, locadoras de DVDs e Blu-rays mantêm um público cativo

Por Patrícia Cassese
Publicado em 18 de agosto de 2018 | 03:00
 
 
 
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Deu no “New York Times” – mais precisamente, na edição de 14 de julho. Após o encerramento das duas unidades situadas no Alasca, a Blockbuster, que já foi uma das redes de locação e venda de DVDs e blu-rays mais poderosas do planeta, agora se limita a uma loja – localizada no Estado do Oregon, nos Estados Unidos. A notícia, na verdade, não ganhou as páginas só do “NYT” – foi destaque nos principais jornais do mundo, o que, na sequência, desencadeou uma onda de pessoas empenhadas em um financiamento coletivo para viabilizar um documentário sobre a “last Blockbuster”. 

Para dar uma dimensão do que foi este verdadeiro império, basta lembrar que, só nos EUA, a rede alcançou o marco de 9.000 lojas. Em Belo Horizonte, a Blockbuster chegou a ter lojas concorridas – numa segunda etapa, junto a outra rede, as lojas Americanas, onde alguns dos resquícios da Blockbuster ainda podem ser vistos (na unidade Gutierrez, por exemplo, as vagas de estacionamento com nomes de artistas seguem lá, ainda que meio apagadas pela ação do tempo). 

Em tempos de streaming, entusiastas da tecnologia digital podem não entender a celeuma em torno da iminência de extinção da Blockbuster – mas a verdade é que ainda há um contingente significativo de pessoas que cultiva o hábito de ir às locadoras à procura de um filme raro ou mesmo do lançamento recente. Não por outro motivo, se a capital mineira não abriga mais nenhuma grande rede, são muitas as locadoras que, instaladas nos bairros ou no Centro, resistem estoicamente. 

“Verdade seja dita, mesmo em seus tempos áureos, a Blockbuster nunca foi propriamente uma meca para os cinéfilos, por se direcionar mais a filmes comerciais”, diz o servidor público Antônio Coelho, 57, acrescentando que os amantes da sétima arte preferem as locadoras menores, mais voltadas aos chamados filmes de arte. E cita, saudoso, a Cinecittà, a Videomania e a Splendor. 

Curiosamente, dois estabelecimentos aos moldes dos citados por Coelho quase descerraram suas cortinas recentemente – aos 45 do segundo tempo foram salvos. Foi em setembro de 2015 que Marlene Lisboa Rosa Almeida Gomes pensou em jogar a toalha frente à concorrência dos piratas e do streaming – chegou a dispensar funcionários de sua Art Vídeo, locadora fundada em 1993 e localizada na rua Fernandes Tourinho. Acabou sendo dissuadida pelo marido, João Carlos. “Ele é um sonhador e falou: ‘Isso é bobagem, nada acaba’. Acontece que, para fechar a loja, eu precisava da ajuda dele, que, junto às minhas meninas, foi me enrolando”, diverte-se. “E na dependência, fui ficando”. 

O empurrão final veio do responsável pelo aluguel das lojas (a Art Vídeo chegou a ocupar duas, contíguas). “Quando a imobiliária conseguiu alugar uma delas, me propôs a dividir o espaço (para que continuasse o negócio). Sabe aquela coisa de todo mundo fazer um jeito para você ficar?”. 

Sim, Marlene capitulou e não se arrepende, embora tenha imprimido um diferencial e tanto a seu negócio. Já há algum tempo, além de locadora, a Art Vídeo também atua como uma espécie de galeria de arte e antiquário, o que só aumentou o charme da ambiência. “Tem muita gente que passa pela rua e exclama: ‘Meu Deus, uma locadora! Pedem para tirar fotos, fazem selfie”, ri ela.

Também situada na zona Sul da capital mineira, mais precisamente no Luxemburgo/Coração de Jesus, a Star Vídeo foi outra que esteve prestes a encerrar suas atividades. Hoje, seu proprietário, Randolfo Paiva, 59, é peremptório: “Se depender de mim, fico aqui até morrer”, diz, lembrando que seu temor atual reporta-se ao futuro das distribuidoras. “Porque não quero trabalhar com cópias”. 

Uma série de entreveros levaram Randolfo a querer desistir – os detalhes, ele prefere não divulgar. Mas foi por meio de uma placa de “aluga-se”, colocada bem próxima ao local que ele mantinha a Star Vídeo (na praça José Cavallini), que o fez vislumbrar uma saída. Há dois meses, com a ajuda de um mutirão de amigos, ele e a esposa, Flávia, trataram de levar o acervo para uma loja da rua Perdigão Malheiros, 529. “Nem luz tinha! Aliás, ficamos dez dias até que fosse instalada”, lembra, divertido. Já tendo dispostos os discos audiovisuais prateleiras afora no novo endereço, Randolfo ainda teve a grata surpresa de ver os amigos oferecerem seus préstimos para resolver as questões inerentes a uma mudança: pintura, corrimão, placa... 

Os trabalhos estão em curso, mas Randolfo já têm o que comemorar: o fato de estar em frente a uma rua de intenso movimento faz com que, enquanto aguardam o sinal, o olhar dos motoristas invariavelmente se volte ao balcão no qual cinéfilos de todas as regiões da cidade alugam pérolas como “O Barato de Grace”, “Nunca Te Vi, Sempre Te Amei”, “Colcha de Retalhos”, “Amélie Poulain”, “A Festa de Babette”, “Filhos do Paraíso” ou “Betty Blue”, para citar algumas das raridades.

“É uma clientela que sai de longe para locar o filme”, conta Randolfo, citando um fenômeno que também é detectado na Art Vídeo, como conta Marlene. “Há pessoas que vêm inclusive de outras cidades – neste caso, fazemos um pacote, para que a devolução seja feita em um prazo maior”. Randolfo usa o mesmo expediente. 

Detalhe: ambos os estabelecimentos também reservam prateleiras para lançamentos, incluindo filmes de apelo comercial. E mesmo nesse caso o prazo de devolução pode ser estendido. “Não precisa ser aquela coisa de devolver em 24 horas, podemos combinar o prazo”, diz Marlene, que, no dia da visita do Pampulha, havia separado “Koyaanisqatsi”, filme de 1992 que chegou a ser exibido na cidade (no extinto Savassi Cineclube) para uma professora da UFMG. “É outro público assíduo: o professor quer levar o vídeo para exibir o filme em sala de aula”.

Quando o filme é tão raro que nem nessas locadoras está disponível, os donos não se rogam a ir à caça. “Depois da família, minha maior felicidade é receber um telefonema de cliente à procura de uma raridade e responder: ‘tenho’. Mas se não, corro atrás”, assegura Randolfo.

 

Interação, raridades e extras

A Junta Comercial do Estado de Minas Gerais (Jucemg) registra atualmente, em BH, 244 estabelecimentos ativos com o CNAE 7722-5/ 00, que se refere a aluguel de fitas de vídeo, DVDs e similares. Mas, diante do manancial disponibilizado por plataformas como Netflix ou Now, ou mesmo no YouTube, o que leva alguém a procurar uma locadora? 

O psicólogo Augusto Duarte enumera. “O público cinéfilo é um pouco mais exigente do que, por exemplo, aquele que se contenta em ligar a TV e assistir ao filme que está passando, inclusive dublado. Ele quer o filme com o som original e, se necessário, legenda”. Não bastasse, Augusto ressalta a importância dos extras. “Pessoas da minha geração – tenho 62 anos – foram criadas em frente à tela de cinema. Com o tempo – e respondo por mim, pois os outros são simpáticos (risos) –, fiquei chato. E passei a querer ver cenas deletadas, informações sobre os artistas, a opinião do diretor... Ou seja, tudo o que é extra, que não aparece na telona, me seduz tremendamente. E onde encontro essa informação de bastidor? Em DVDs. Os filmes de Fellini, por exemplo, costumam trazer entrevistas fabulosas”, alerta.

Como prova de que o interesse por filmes clássicos e/ou de arte segue vivo, Augusto cita o fato de o jornal “Folha de S. Paulo” ter iniciado, há duas semanas, a série “Grandes Diretores no Cinema”, com “Monika e o Desejo”, de Ingmar Bergman, e “Soberba”, de Orson Welles, cujos DVDs vêm acompanhados por um livro que analisa aspectos da obra do diretor. E, ainda, o fato de a Versátil Home Vídeo seguir lançando, em DVD, clássicos – entre os mais recentes, a digipack “Filme Noir Francês”, com filmes de Jean-Pierre Melville, Jacques Becker e Claude Sautet. “Ou seja, há um resgate daquilo que a gente poderia até chamar de vintage, embora esse não seja um termo muito atrelado a locadoras”. 

No que tange à faixa etária, Randolfo diz que é das mais diversificadas. “Há meninos que vieram aqui crianças e hoje são cinéfilos”. Os professores, como citado por Marlene Lisboa, são outro público ávido, assim como os da terceira idade. Dona da Art Vídeo, ela também lembra que, quando a cidade sedia uma mostra de destaque, como a recente “O Lobo à Espreita”, dedicada a Bergman, a procura pelos filmes do diretor triplica, uma vez que muitos não querem enfrentar as filas ou mesmo assistir em sessões lotadas.

Um dos mais conhecidos funcionários de locadoras da cidade (trabalhou na Companhia do Vídeo e na BH Vídeo) e cinéfilo de carteirinha, Marcello Guimarães acrescenta: “O melhor canal de TV a cabo, ou mesmo a Netflix, têm acervos limitados, disponíveis por um período determinado. Já tive clientes que disseram: ‘Nossa, quando fui assistir, tinham tirado’. Ou seja, fica-se à mercê do catálogo. Mesmo o Mubi (conhecido como o Netflix dos cinéfilos) tem um acervo limitado”.

Venda de acervo

Quem passa pela rua dos Guajajaras, no centro, se depara com uma placa que instiga: “Não é uma locadora”. Pode soar estranho, mas é isso mesmo. Ali estão à venda, a partir de R$ 3, DVDs e BluRays, usados ou novos. O intento é atender a um público mais seleto que o que ainda vai a locadoras. “O público que aluga quer desfrutar o filme, mas não quer tê-lo, não tem o propósito de montar coleção. O hábito de colecionar é diferente. Aí, o DVD está disponível a qualquer hora, mesmo de madrugada, e o espectador pode ver os extras à vontade. Locadora é um lugar muito gostoso, mas tem que devolver. Por outro lado, nas poucas locadoras que resistiram, os clientes gostam de interagir, seja com o dono ou outros clientes. E isso não vai mudar”, vaticina Guimarães, que atualmente trabalha nesta loja.

Dores e delícias da vida de balcão

O coach Luiz Hippert foi dono de uma locadora (a Hiper) que acabou sucumbindo aos novos tempos. “A clientela foi ficando cada vez mais escassa. Na região (Floresta) havia, acho, nove. Fui o último a fechar. A resistência se deu porque não tinha aluguel, não tinha mais funcionários e passei a funcionar de forma bem alternativa: eu mesmo atendia, sozinho. O fechamento foi gradativo até o dia que encerrou de vez”. Para ele, o mais bacana da experiência foi o contato com o cinema. “Você fica bem envolvido com esse mundo de produções, lançamentos, atores, diretores, de uma maneira diferente que um cinéfilo, vamos dizer, ‘normal’. Porque fica inserido nesse universo, faz mesmo parte”. 

Outro ponto positivo, ressalta, eram os clientes que “curtiam falar sobre filmes e buscavam indicações”. “Ir conhecendo o perfil das pessoas e acertar as indicações era muito legal”. Por outro lado, como em todo comércio, havia os inconvenientes. “Os que criavam caso, dificultavam na hora de pagar, ou que queriam levar vantagem. Algumas promoções, a gente acabava tendo que encerrar por isso. Uma época, por exemplo, resolvemos baratear os filmes locados a partir de 20h. Então, tinha cliente que chegava às 19h, ou até antes, e ficava com o filme em mãos até dar 20h. Ou seja, quem chegasse para pegar o filme X e pagar o preço normal não conseguia, porque tinha gente segurando”.

As compras também entravam no rol de coisas aprazíveis. “Receber as listas, selecionar. Fora garimpar, a melhor parte. Visitar acervos, lojas. Na verdade, vira um vício”. 

O acervo, lembra Hippert, foi colocado à venda. “Mas nem tudo foi adquirido – e nem foi fácil”. A venda, diz, se deu em “fases”. Mas em agosto do ano passado, como a loja (que era própria) foi alugada, ele teve que de fato esvaziá-la. “Nessa fase, além de venda, fiz muitas doações, principalmente de VHS – sim, até o final, ainda tínhamos no acervo – e um pouco de DVDs”. Claro, algumas raridades, ele acabou levando para casa. 
Em tempo: Hippert conta que a “vida de balcão” o ajudou também em outras áreas. “Como consultor, atividade que exercia paralelamente, praticamente era o único que conhecia atendimento ao cliente além da teoria. Ali na ponta, na prática do dia a dia”.

 

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