Era uma tarde qualquer na academia. A escritora Liliane Prata, 35, tentava aumentar mais uma barrinha no peso para tornear as pernas, quando ouviu um diálogo que quase a fez perder a conta das séries. “Ouvi uma mulher pedindo uns comprimidos do ansiolítico Rivotril para a amiga, porque o psiquiatra dela tinha saído de férias e a cartela ia acabar antes que ela conseguisse outra receita. O motivo do descontrole? Ela tinha dado alguns para a filha, que estava nervosa por causa das provas do vestibular”. Estabelecida de forma bastante banal, a conversa gerou um desconforto enorme a Liliane pela tranquilidade e ausência de culpa do pedido. “A filha devia ter no máxima uns 17 anos e já estava tomando Rivotril por causa de uma prova! Algo que normalmente deixa a gente nervoso mesmo!”.
Apesar da indignação de Liliane, talvez muita gente que estava malhando naquele mesmo ambiente tenha levado o diálogo numa boa. “Ok”, diriam alguns, como se se tratasse de balas e chicletes. Faz sentido a hipótese, afinal, em um país considerado o maior consumidor do mundo em volume de clonazepam, o princípio ativo do medicamento, é possível que as pessoas já estejam bem acostumadas à onipresença da chamada “pílula da felicidade”, seja nas falas, nas farmácias, na bolsa do amigo, na caixinha de primeiros socorros da família, na mesa de cabeceira da tia…
No entanto, um dado recente fez voltar os olhos novamente para a relação que os brasileiros mantêm com o ansiolítico de tarja preta, receitado geralmente para tratar ansiedades, bipolaridades, síndromes do pânico e depressões. O consumo aumentou de 29 mil caixas por ano em 2007 para 18 milhões só de janeiro a setembro deste ano no país, de acordo com dados da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).
Não é de hoje que especialistas alertam para o uso excessivo e desnecessário do remédio, mas o aumento exorbitante em um intervalo de menos de uma década trouxe de novo o debate à tona, de forma ainda mais incisiva. Mais do que nunca é preciso discutir o papel das medicações no nosso cotidiano.
Tecnologia
“Esse aumento é espetacular. E, a partir dele, podemos pensar na mudança de sensibilidade com relação ao seu sofrimento. Em uma sociedade em que impera a felicidade, aqui e agora, acredito que tenhamos nos tornado mais sensíveis a qualquer sentimento de mal-estar”, comenta Paulo Vaz, professor da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisador da medicalização na contemporaneidade.
Chegamos a esse lugar de consumidores excessivos, conforme Vaz, dentre outro fatores, devido a um trabalho massivo da indústria farmacêutica para nos convencer de que o mal-estar que estávamos sentindo e que considerávamos apenas uma parte chata do dia a dia era uma doença e – boa nova – existia remédio pra ela. Mas, como acontece em tudo, a questão é muito mais complexa e revela muito, segundo o pesquisador, do lugar que o homem dedica às tecnologias em sua relação com o mundo.
“Estamos o tempo todo rodeados por objetos técnicos, celulares, computadores, rádio, carro, para dar conta de nossas necessidades e esquecemos que os medicamentos também são tecnologia. Usamos o remédio para dar conta de nosso sofrimento e de nossas angústias, como algo que solucione, rápida e eficazmente, o que é a função de um objeto técnico, em vez de apostar na autocompreensão”.
Amenizando sentimentos como angústia e ansiedade, acusa-se a ingestão desmedida dos psicotrópicos como responsáveis por criar um exército de cidadãos apáticos, incapazes de serem atraídos, inclusive, por estímulos considerados positivos e necessários para crescer. “A tristeza, por exemplo, seria um momento necessário de experienciarmos o luto de alguma coisa importante que perdemos, para podermos então nos lançarmos para outras experiências. Já a falta, vivenciada como angústia, é o que nos coloca em movimento. Uma quota de angústia é inerente a todo ser humano. É ela que nos faz desejar, buscar nossos caminhos, atuar no mundo”, comenta Oswaldo França, professor do Departamento de Psicologia da UFMG.
Contrariando a posição do seu psiquiatra, foi um caminho alternativo de enfrentamento que Liliane Prata decidiu seguir. Tendo sido ela também usuária de antidepressivo após passar por três períodos de depressão, precisou quase assinar um termo de responsabilidade quando expressou ao especialista sua vontade de largar o remédio, que tomou por um ano e tentar uma vida menos química. “Ele disse que eu tinha uma clara tendência depressiva e que provavelmente teria que tomar os remédios por muitos anos”, conta. Firme na sua decisão, hoje a escritora prefere recorrer a práticas que olhem mais para si e para as raízes dos problemas. “A doença é bem mais multifacetada para um simples remédio resolver. Meditação e psicoterapia foram boas escolhas para mim”.
Também necessário
No entanto, a possibilidade de pensar em tratamentos alternativos, segundo Maurício Viotti Daker, professor de psiquiatria da Faculdade de Medicina da UFMG, não deve, de forma alguma, desmerecer a condição de quem realmente precisa fazer uso dos remédios. “Depressão é uma doença e não deve ser confundida com a tristeza, sentimento comum que nos acomete. O clonazepam atua imediatamente e traz um alívio imediato para situações de fortes crises para quem sofre de um mal psíquico e pode estar à beira de fazer alguma bobagem contra si mesmo. Mas não se deve esquecer do seu potencial de gerar dependência. É algo que já tem que ser colocado como temporário, um tratamento com duração de duas a três semanas, até começa a reduzir ou usar só nas crises”, orienta o professor.
Pedro Resende, 24, por exemplo, se sente melhor agora que conseguiu retirar o Rivotril da sua lista diária e reduzir sua ingestão de medicamentos, ficando apenas com outro ansiolítico e um antidepressivo para tratar crises de e crises de pânico. Ele, porém, ainda não consegue ficar tranquilo se não levar consigo o clonazepam na mochila. Ainda considerando sua relação com os medicamentos turbulenta, o historiador acredita que tamanha exposição do tema na mídia (leia mais na página 4) tem diminuído o preconceito com relação a pessoas portadoras de doenças psicológicas e psiquiátricas.
Entretanto, o ilustrador Fernando Rocha*, 36, que já chegou a ingerir nove remédios diferentes por dia por conta de uma série de consequência acarretadas por depressão crônica, alerta para a banalização dos comprimidos. “As pessoas falam como se fosse algo simples e saem comentando ‘eu adoro Rivotril’, ‘nossa, minha vida está ruim, mas é só tomar um Rivotril que passa’. Acham que é algo bom, mas ninguém sabe do sofrimento que está por trás”.
‘Quem ri por último, Rivotril’