RuPaul: talvez você reconheça esse nome em alguma memória perdida dos anos 1990, quando ela (ou ele, que já disse que não se importa com a forma como os outros o chamam, contanto que o chamem) se transformou na primeira drag queen mundialmente famosa, depois de estampar capas de revista de circulação global, lançar o disco “Supermodel of the World” (1993) e se tornar a primeira modelo drag da grife de cosméticos M.A.C. 

Após um período distante dos flashes, a estrela norte-americana, hoje com 54 anos, retornou à cena e tem sido uma das responsáveis por uma nova – e crescente – onda de interesse pelas drag queens ao redor do mundo, dentro e fora do meio LGBT. Seu programa de TV, o reality show “RuPaul’s Drag Race”, estreia a sétima temporada nesta segunda (2) em franca ascensão de popularidade, chama a atenção para esse universo e é inspiração para uma série de festas de apelo drag, não mais restritas aos espaços tradicionais desse nicho.
 
Desde o ano passado, a vinda das próprias competidoras do programa de RuPaul dos EUA para festas tem intensificado esse fenômeno e, pela primeira vez, BH recebe uma delas: Jujubee, uma das finalistas da segunda temporada e das mais queridas de todas as edições, vem à cidade se apresentar na festa @bsurda, no Roxy Club, na próxima sexta (6). 
 
Cada vez mais frequentes em todo o Brasil, Belo Horizonte inclusa, eventos, programas de web TV e peças teatrais têm contado com a presença e performance de drag queens. Mas apesar da crescente abertura desse segmento na capital, há um longo caminho ainda a ser percorrido por elas no que diz respeito a legitimidade, valorização, fim dos preconceitos. Na atual Campanha de Popularização, por exemplo, nomes como Nayla Brizard, Kayete e Marilu Barraginha estão em cartaz. Mas chegar até aqui, segundo Barraginha, ou melhor, seu intérprete Rogério Viola, 40, que tem mais de 20 anos de carreira, não foi nada fácil. “Quando começamos ‘As Barbeiras’, ninguém queria nos dirigir. Não tínhamos credibilidade”, lembra. Apesar disso, já são sete anos em cartaz e o espetáculo figura na 12ª posição no ranking das peças mais vistas da atual campanha.
 
Esses casos, no entanto, ainda são exceções. “Atores que interpretam mulheres são uma coisa. Artistas transformistas nos espetáculos são outra e ainda são poucos, isso ainda precisa avançar”, comenta Bruno Souza Leal, professor do departamento de comunicação social da UFMG e ex-presidente da Associação Brasileira da Homocultura. O que de positivo acontece agora, segundo ele, é fruto de uma ampliação dos espaços de performance que recebem esses artistas. 
 
Os shows de drag queens em Belo Horizonte atualmente se concentram nas casas tradicionais, mas há algum tempo começaram a se expandir para festas de pegada mais alternativa, como a Dengue - Duelo de Vogue e a própria @bsurda, eventos, como a Virada Cultural e os festivais de verão e de inverno da UFMG, além do CentoeQuatro e da Gruta. “É um processo em curso. Considero desejável que esses ambientes se ampliem e se diversifiquem, só não gostaria de afirmar que há plena aceitação. Ainda são poucos os espaços regulares para as apresentações”, diz Leal.
 
Relações de trabalho
Em geral, a maioria dos contratos das drags é informal. “Sou contratada hoje com carteira assinada pela boate Estação 2000, a primeira de BH a fazer isso”, conta Barraginha. Porém, mais uma vez ela é exceção e a realidade profissional continua sendo complicada para a maioria das drag queens. Sob esse ponto de vista, ainda estão na marginalidade. “Mesmo se tratando de uma atividade que envolve o glamour, o aplauso, ela não escapa ao preconceito a que o homossexual está submetido e isso fica evidente nos contratos de trabalho, nas remunerações, no tratamento dos donos dos estabelecimentos”, avalia Luiz Alex Silva Saraiva, professor da Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG que orienta dissertação sobre a construção socioprofissional das drags. “Acabamos vendo uma reprodução da violência que sofrem socialmente por conta da orientação sexual estendida ao contexto econômico”.
 
Foi isso que afastou Malonna da noite belo-horizontina, onde foi figura frequente por quase dez anos. “Há um ano e meio me mudei para São Paulo. Trabalhar como drag em BH é muito sofrido”, diz. Na capital paulista, Malonna conseguiu maior visibilidade e autonomia para o seu trabalho, mas continua tendo que suar para não enfrentar situações de abuso. “Conheço gente que investe R$ 3.000 num look, faz peruca de cabelo humano, compra maquiagem de marca e aceita trabalhar por cachê de R$ 150. Eu, por esse valor, não tiro nem a barba”, conta. “Mas como em alguns cantos é um trabalho tão estigmatizado, entendo que aceitem porque sabem que se não o fizerem, o contratante vai chamar alguém que vai querer fazer por R$ 100”.
 
Censuradas em BH nos anos 60
A presença de homens “montados”, ou seja, caracterizados com elementos atribuídos ao universo feminino, não é novidade na cena cultural. O significado do termo drag está associado tanto à expressão “dressed as girl” (vestido como garota, em inglês), quanto ao verbo arrastar, e foi usado por Shakespeare, quando mulheres não eram permitidas no teatro, para identificar os atores de suas peças que faziam papel de mulher, em referência às longas saias que eles arrastavam pelo palco. 
 
Em BH, os registros remontam à década de 1960. “Desde meados desta década, havia prática do transformismo em ambientes voltados para o público gay”, afirma Luiz Morando, professor do Uni-BH e pesquisador da constituição das identidades LGBT em BH. Ele cita como um dos pioneiros o clube Montanhês Dancing, na rua Guaicurus, que em seus tempos áureos, décadas antes, chegou a receber o cineasta inglês Orson Welles entre seus ilustres visitantes. 
 
“Na época, era uma prática meio que proibida, até censurada pela polícia, em que homens que tinham identidade masculina durante o dia se transformavam nessas noites, de forma artística, fosse em estilo mais caricatural ou glamouroso”, explica Luiz. 
 
A drag queen vem na esteira da evolução desse processo, já que, mais requintada que a transformista, consegue atingir outras camadas da população. “A popularização do termo na década de 1990 se dá por conta de RuPaul e, principalmente, por ‘Priscilla, a Rainha do Deserto’ (1994), um filme marcante da época, que fez com que esses artistas adquirissem maior status de ‘entertainers’ e vivessem um processo de reconhecimento artístico”, explica o professor do departamento de comunicação social da UFMG Bruno Souza Leal. 
 
Foi aí a primeira saída do gueto, já que não estavam mais restritas à noite gay underground e passaram a ter lugar na mídia e também em confraternizações “convencionais”, como formaturas, casamentos ou mesmo “festas da firma”. 
 
No rastro de Ru Paul
Coloque uma dúzia de drag queens numa sala de trabalho, abasteça com tecidos, maquiagem, acessórios, perucas, sapatos e proponha desafios de costura, dança, canto, atuação e comédia. Tempere com pinceladas de suas histórias fora dali – incluindo enfrentamento de preconceitos – e uma pitada de troca de farpas entre elas. Tudo tendo em vista um prêmio em dinheiro (US$ 100 mil, na última temporada) e uma coroa representando o título de “próxima superstar drag dos EUA”. 
 
É essa, basicamente, a fórmula de “RuPaul’s Drag Race”, o reality show norte-americano que é mania crescente entre jovens do mundo todo. Exibido no Brasil pelo serviço de TV sob demanda Netflix, o programa é uma injeção de força no processo de popularização da cultura drag. Prova disso é que uma versão inglesa já foi confirmada e uma edição alemã está em processo de negociação. Sem falar em “Academia de Drags”, produção tupiniquim para web apresentada pela drag paulistana Silvetty Montilla, que tem claras inspirações no modelo.
 
O público da edição da festa @bsurda que recebe a ex-participante Jujubee na próxima sexta (6) é indício da renovação no interesse pelas drag queens originada pelo programa. “Além de haver um número bem mais expressivo que o comum de mulheres procurando ingresso, já ouvi também muitos héteros dizendo que vão, nem que seja para acompanhar suas namoradas”, conta Ed Luiz, 33, produtor da festa. “Inclusive, eu fui procurado pela mãe de uma menina de 13 anos querendo saber da possibilidade de levá-la”.
 
“RuPaul teve a capacidade de perceber que as pessoas estavam voltando a ter interesse pelas drags e por isso fez o programa. Agora existe um público universitário, de classe média, se envolvendo com isso”, afirma André da Silva, criador da Malonna. Ele acredita, porém, que muitos desses fãs gostam de um produto televisivo e não do trabalho das drags em si. “Nosso papel enquanto profissionais é seduzir essas pessoas e transformá-las de fato em público nosso”, diz.
 
Escola
Outra contribuição do reality show é explicitar que toda uma formação, um conjunto de habilidades, é necessário para ser drag queen. “O legal é que ele mostra que é possível ter uma escola, as provas e desafios têm uma espécie de ‘conteúdo acadêmico’ e isso reforça o sentido de profissão da nossa atividade”, destaca David Trindade de Araújo, 37, mais conhecido como Dolly Piercing – que, aliás, também é uma das atrações festa @bsurda.
 
Mais do que isso, o “RuPaul’s Drag Race” tem um caráter político, como ressalta Rafael Lucas Bacelar, 27, ator do coletivo Toda Deseo, que realiza performances com atores “montados” e também se apresentará na festa. “É um programa de alcance internacional em que a comunidade LGBT se vê representada e que mostra os estigmas a que ela está sujeita nas próprias histórias dos participantes. Apesar de haver uma certa higienização (RuPaul é quase uma Barbie), acaba que muita gente se identifica, sobretudo nesses relatos de preconceito, abjeção”, afirma.
 
Mesmo não se identificando exatamente como drag queen, Ravel Brasileiro, 27, passou a se “montar” sob influência do programa. Começou por diversão, para questionar os limites do feminino e do masculino, não só em festas, mas também no cotidiano. “Pelo menos entre as pessoas à minha volta, minha mãe, irmãos, amigos, tios, isso suscitou um debate”, conta. “E não só eu, como muitos deles mudaram em relação a questões como sexualidade e representações de gênero”.
 
@bsurda
Jujubee, Dolly Piercing, Coletivo Toda Deseo e outras atrações
Roxy Club (r. Antônio de Albuquerque, 729, Savassi). Dia 6 (sexta), às 22h. R$ 30 (1º lote)
 
De casamento a funeral 
Interessada pelo universo feminino desde criança, Dolly Piercing (David Trindade de Araújo, 37, não se importa em ser tratado no feminino ou chamado pelo nome artístico, mesmo fora dos palcos) vestia as roupas da irmã e usava as maquiagens da mãe. “Me trancava no banheiro e passava horas fazendo aquilo, era como fazer uma meditação”, conta.
 
Além de se apresentar na noite, tanto sozinha quanto com sua banda, Dolly and Piercings, concentra boa parte de seus trabalhos durante o dia. “Faço chás de lingerie, festas de casamento, aniversários. Chamo de ‘quebra gelo’. A festa normalmente está um pouco parada e então eu chego, faço brincadeiras (algumas com referências à sexualidade, mas nada ofensivo) e torno o ambiente mais animado”, diz. 
 
André da Silva também leva Malonna a esse tipo de evento. “Já fiz festa de criança, casamento,15 anos, formatura. Até um velório, por acidente”, revela. “Na verdade, era para ser uma festa, mas alguém morreu e usaram o espaço para o funeral. Só esqueceram de nos avisar. Acabamos fazendo um escarcéu”. Quando ela e as demais integrantes do grupo Donas Drags, do qual fazia parte, viram, os presentes estavam rindo.
 
A questão é se adaptar às propostas. “Eu já fiz muita coisa, mas pessoalmente tenho uma versatilidade limitada ao meu interesse. Faço coisas que considero valer a pena para mim. Só me arrisco em algo que não sei fazer se tiver certeza que farei bem feito”, explica.