Um homem conciliador, disposto a ouvir quem pensava o contrário, e de coragem. Assim Tancredo Neves foi definido por seu neto, o deputado federal Aécio Neves (PSDB), em entrevista exclusiva a O TEMPO. Nesta segunda-feira (21 de abril), completam-se 40 anos da morte do político mineiro, eleito presidente por uma votação indireta que marcou o fim da ditadura militar, mas que faleceu antes mesmo de tomar posse do cargo.

Conforme Aécio, em sua trajetória política, Tancredo exerceu papel fundamental na luta pela democracia, tanto na reta final do regime militar, quanto no período que antecedeu o golpe de 1964. Como ministro da Justiça do presidente Getúlio Vargas, ele foi uma das últimas pessoas a verem o ex-presidente vivo, em 1954. Tancredo foi eleito chefe do Executivo federal em 1985, em uma eleição indireta no Congresso Nacional. Entretanto, antes mesmo de ser empossado, o então presidente eleito teve problemas de saúde e faleceu.

“Infelizmente, como ele próprio dizia, presidência é destino, e o destino não permitiu que ele assumisse a presidência do Brasil”, comenta Aécio Neves.

O deputado federal, que tinha 25 anos quando Tancredo veio a óbito, acompanhou de perto os últimos dias do político e as movimentações em torno de seu estado de saúde. Após 40 anos da morte de seu avô, Aécio avalia que o Brasil carece, atualmente, de mais figuras como Tancredo, que prezam pelo diálogo na política.

“Essa coragem pessoal, aliada à sua cultura, ao seu preparo e à sua capacidade de conciliar, fizeram dele um homem público especial e que estaria vendo com muito desalento o que ocorre hoje no Brasil, onde a política do diálogo e do convencimento deu lugar à política da ofensa, do ataque gratuito, de derrotar o adversário de qualquer forma e não de construir uma agenda para o país”, diz Aécio.

Confira, abaixo, a entrevista do deputado federal a O TEMPO.

O TEMPO (OT): Quando o senhor pensa na morte do seu avô, Tancredo Neves, em 1985, qual é o primeiro sentimento e a primeira lembrança que vêm, analisando o contexto político da época?

Aécio Neves (AN): Tancredo se preparou como poucos brasileiros ao longo da nossa história para assumir o poder. E não era um momento qualquer, era um momento de ruptura com 21 anos de ditadura. Por isso ele buscou, durante toda sua campanha, o respaldo popular, como aconteceu nas Diretas Já. Quando Tancredo é indicado candidato na disputa no Colégio eleitoral, ele sempre dizia que era fundamental manter a população mobilizada, porque o risco de um retrocesso, um risco de um acirramento de setores do Regime militar, que não se conformava com a transição, era iminente. Tanto que logo após sua vitória, em 15 de janeiro de 1985, ele reúne um pequeno grupo de pessoas e dá uma volta na Europa, nos Estados Unidos e América do Sul, visitando os principais líderes democráticos do mundo, em busca do apoio e solidariedade desses líderes para a transição (de regimes), que só aconteceria com a posse do presidente, que acabou sendo o presidente Sarney, no dia 15 de março. O que eu lamento é que, além da saudade pessoal do neto, o Brasil tenha perdido a oportunidade de ter alguém com autoridade para tomar as medidas necessárias contra uma gravíssima crise econômica e a consolidação da democracia. Nós temos a sorte do presidente Sarney ter cumprido pelo menos parte disso, com enorme esforço, que foi a consolidação com a convocação da constituinte e a sua elaboração, mas a crise econômica atingiu graus e eu acho que ele era o homem certo para a presidência do país. Infelizmente, como ele próprio dizia, presidência é destino, o destino não permitiu que ele assumisse a presidência do Brasil.

OT: Qual era o sentimento de Tancredo Neves antes de se sentir mal e não conseguir assumir a presidência?

AN: Tancredo tinha noção clara de que a democracia ainda corria riscos e ter adiado a cirurgia a que ele deveria se submeter foi, talvez, o mais claro gesto dele de responsabilidade para com o país. Afonso Arinos dizia que muitos homens deram sua vida pelo país, Tancredo fez mais, deu sua morte. Ele considerava essencial que tomasse posse porque Figueiredo não passaria a faixa presidencial para o presidente Sarney e isso levou que algumas lideranças mais radicais das Forças Armadas, naquela madrugada, ainda pensassem em algum retrocesso. Tanto que na véspera da posse, que ocorreria no dia 15 de março, na noite de 14 de março, eu já estava com ele, já procurando os médicos porque ele havia se sentido mal, e o ministro José Hugo Castelo Branco, que seria o ministro da Casa Civil, onde nós estávamos, chega na Granja do Riacho Fundo onde nós estávamos, com os atos de nomeação do ministério e eu disse a ele (Tancredo), estava na cama, que eu iria  dispensar o José Hugo e vamos para o Hospital. Ele respondeu: pode dispensar o José Hugo, mas traga aqui os atos. Assinar esses atos seria, segundo ele, fundamental naquele momento. Eu, claro, não entendia ainda a dimensão daquele gesto, mas levei cada um dos atos, ele nomeou o ministério, me nomeou, inclusive, secretário particular, e depois nós fomos para o Hospital de Base de Brasília, que virou uma “torre de babel”, uma coisa inacreditável o que aconteceu por lá. Quando a notícia circula, que Tancredo não tomaria posse na manhã do dia 15, há o relato de que o ministro Walter Pires, ministro do Exército (de Figueiredo), comunica ao ministro Leitão de Abreu, da Casa Civil do Tancredo, que estaria voltando para o Ministério do Exército e ele avisa que (Walter Pires) não pode voltar, não era mais ministro, pois o Diário Oficial já circulava com a nomeação do general Leônidas Pires Gonçalves como ministro do Exército. Aquele ato singelo, em momento de dor, mostra a dimensão do presidente Tancredo: assinar a nomeação pode ter evitado uma tentativa mais aguda de setores do Regime Militar para impedir que a transição ocorresse.

OT: Neste ano, acompanhamos a luta do prefeito de Belo Horizonte, Fuad Noman, que conseguiu tomar posse, mas não conseguiu exercer o mandato dele. Teve algum momento nesse período de internação de Fuad que te fez lembrar de algo em relação ao fim da vida de Tancredo?

AN: O Tancredo viajou para a Europa, para a América, sem reclamar de absolutamente nada. Quando nós retornamos, estava na fase final de montagem do governo, ele sentiu algumas dores abdominais. Os médicos da escolha dele foram chamados e fizeram o monitoramento do presidente Tancredo durante todos aqueles dias, tiravam sangue, viam os indicadores e em nenhum momento nos alertaram para a gravidade do quadro. Tanto que quando ele passou mal na noite do dia 14, na véspera da posse, eu tento localizar os médicos, que deveriam estar ali caso soubessem a gravidade do que estava ocorrendo, eu tive uma dificuldade enorme de localizá-los. Estavam em festas, em comemorações, que haviam muitas ocorrendo em Brasília na véspera da posse.Levei mais de uma hora para localizá-los, que demonstra que eles não tinham uma avaliação correta do quadro que o presidente Tancredo estava vivendo. O próprio fato de levá-lo para o Hospital de Base, que foi invadido por uma multidão de gente - em relatos depois, nas investigações, mostram que no centro cirúrgico tinham mais de 20 pessoas que não tinham nada a ver com a cirurgia, eram curiosos. Também o fato de terem negado um pedido meu, de levá-lo diretamente para São Paulo, a gente tinha um avião pronto para levar e eles negaram a fazer, eu acho que teve um grande impacto para o desfecho fatal do quadro clínico do Tancredo.

OT: O senhor arriscaria um palpite de como Tancredo Neves veria o momento atual da política no Brasil?

AN: Eu costumo dizer que Tancredo era uma mescla de duas personalidades. Uma a do conciliador, a do homem afável no trato, sempre disposto a ouvir quem tinha opinião contrária e ele passou muito essa imagem de grande conciliador e isso foi essencial ao Brasil. Mas era um homem também de uma coragem pessoal poucas vezes vista. Ao longo da vida, como ministro da Justiça do presidente Getúlio Vargas, com apenas 42 anos de idade, quando parte do ministério já se rebelava contra Getúlio, na última reunião ministerial, ele pede licença para sair e prender o ministro da guerra, que já se aliava àqueles que queriam a deposição de Getúlio. Um dos ministros presentes então diz: mas Tancredo, isso é uma loucura, você pode ser morto. Ele então respondeu: existem poucas oportunidades para morrer por uma boa causa, essa é uma delas. Getúlio, minutos antes do tiro fatal que tirou sua vida, passa pelo corredor do Catete, onde o Tancredo estava já há alguns dias, sem voltar para casa, quando o presidente Getúlio dá a ele uma caneta e diz que é para guardar como uma lembrança dos momentos complicados que estavam vivendo e segue para o quarto. Óbvio que ninguém imaginava o que iria acontecer em seguida; mas aquela caneta foi a utilizada para assinar a carta-testamento. Poucos minutos depois, Tancredo ouve o estampido, chega no quarto junto com Alzira, filha de Getúlio, e foram as últimas testemunhas do presidente com vida. Depois, seja acompanhando Juscelino nos inquérito policiais que ele respondia ao longo da ditadura; seja estando firme ao lado do presidente Jango quando os militares não queriam a sua posse; seja no Congresso quando Auro de Moura Andrade declara vaga a presidência da República e dá início ao processo autoritário no país, em 1964, as gravações daquela sessão mostram uma voz ao fundo gritando “canalhas, canalhas”, era Tancredo ao fundo, que ali sentenciava que estávamos mergulhando em mais de 20 anos de autoritarismo. Então essa coragem pessoal, aliada à sua cultura, ao seu preparo e à sua capacidade de conciliar fizeram dele um homem público especial e que estaria vendo com muito desalento o que ocorre hoje no Brasil, onde a política do diálogo, do convencimento, deu lugar à política da ofensa, do ataque gratuito e de derrotar o adversário de qualquer forma e não de construir uma agenda para o país. Infelizmente o Brasil vive hoje a falta de homens públicos como Tancredo, como Ulysses, Teotônio e outros, que ajudaram o país a enfrentar aquela quadra de extrema dificuldade.

OT: Em todos esses anos de atuação na política, agora como deputado federal, qual ensinamento do seu avô o senhor considera mais relevante?

AN: Ninguém é dono da verdade. É preciso estar sempre disposto a ouvir o contraditório, que na política o adversário de hoje pode ser, eventualmente, o aliado de amanhã e não deve ser tratado como inimigo e que a política tem um sentido muito nobre. A política exercida com altivez, com responsabilidade, com correção, talvez seja a atividade mais digna que alguém pode exercer na sociedade. Essa política, hoje tão combatida e tão demonizada, com razão, por causa de algumas atuações, é na verdade essencial e vital para que qualquer sociedade possa definir seu destino. A missão maior de Tancredo é na crença da política como instrumento de transformação efetiva na vida das pessoas. Por isso devemos insistir e lutar para, através do diálogo, construir as pontes necessárias às transformações que o Brasil ainda precisa viver, porque muitos dos desafios daquele tempo ainda são os desafios de hoje.