O primeiro Código Eleitoral do Brasil, editado em 1932 pelo então presidente Getúlio Vargas, completa 90 anos hoje. A normativa instituiu à época conquistas relevantes para a democracia, como, por exemplo, o voto feminino, o voto secreto e a criação da Justiça Eleitoral, até hoje em vigor. O instrumento permaneceu em vigor até 1965. Porém, ao mesmo tempo em que comemora o aniversário do marco, as instituições, assim como na década de 1930, são provocadas pela necessidade de adequar o sistema eleitoral aos temas urgentes impostos pelo contexto sociocultural.  

Até fevereiro de 1932, não havia uma legislação eleitoral nacional. Cada Estado tinha autonomia para conduzir o processo eleitoral à sua maneira, o que, conforme o professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Carlos Ranulfo, gerava uma fraude generalizada nas eleições da Primeira República. Além de determinar a criação do Tribunal Superior, o Código Eleitoral de 1932 prevê a instituição de um Tribunal Regional na capital de um dos Estados, no Distrito Federal e na então “sede do governo do Território do Acre”. 

A partir de então, a organização e a fiscalização das eleições passam a ser conduzidas por uma instituição. “Quer dizer, saímos de um processo de eleição sem controle, fraudada, porque ficava na mão da oligarquia dominante de cada Estado, para uma eleição em que teremos um órgão federal que vai cuidar do alistamento (de eleitores), vai fiscalizar a eleição e que institui algumas novidades”, avalia Ranulfo.  

A Justiça nas eleições 

A criação da Justiça Eleitoral, de acordo com a servidora da instituição Roberta Maia Gresta, passa a permitir a um terceiro, “desinteressado”, cuidar do processo eleitoral, o que era da competência do Legislativo anteriormente.  

“O Judiciário é o único Poder que não tem a legitimidade assentada em um processo eleitoral. A fonte de legitimidade do Judiciário está ligada a outras regras que não são as eleições. O Executivo depende de eleição. O Legislativo depende de eleição. Ao julgarmos o processo eleitoral aos cuidados deste terceiro, a gente consegue alcançar maior imparcialidade”, argumenta Gresta.  

Quando nasce, a Justiça Eleitoral tem como uma das principais funções, além de organizar o pleito, prevenir e repreender crimes eleitorais a partir de um corregedor eleitoral, que, à época, até tinha atuação discricionária, conforme a doutora em direito político. “Então, a Justiça Eleitoral, junto com o código, surge com o propósito de conferir maior legitimidade e maior segurança, focada principalmente na liberdade do eleitor a partir da constituição do sigilo do voto, além da ampliação do eleitorado através da inclusão do voto feminino”, explica Gresta. 

O Código Eleitoral de 1932 institui o voto feminino para mulheres acima de 21 anos a partir da mobilização de movimentos sufragistas, assim como resguarda o sigilo do voto. O eleitor seria isolado em um “gabinete indevassável” e, então, introduziria a cédula com o voto em uma sobrecarta. 

Após cinco anos, regras foram suspensas 

Entretanto, a instauração do Estado Novo suspende o Código Eleitoral de 1932 apenas cinco anos após ser instituído. “O Estado Novo suspendeu as eleições diretas. Se suspendeu as eleições, o Código Eleitoral está suspenso. (...) Até 1945, não temos eleição nenhuma”, lembra Ranulfo.  

Os partidos até então existentes também foram abolidos. Em 1937, o Brasil estava às vésperas de realizar a primeira eleição direta para a Presidência sob as novas regras, quando o presidente Getúlio Vargas, desde a Revolução de 1930 no poder, promulgou a Constituição de 1937 para continuar à frente da República.  

O Código Eleitoral de 1932 seria retomado somente em 1945 a partir da Lei Agamenon Magalhães. “Ele não foi derrubado, ele foi suspenso. Depois, há pequenas mudanças, mas, vamos dizer assim, a roda já estava inventada. O voto secreto, o voto feminino e a representação proporcional já estavam dados. Não há a necessidade de se fazer uma nova lei. A lei já estava lá”, pontua o professor da UFMG. Dentre as novidades, estão mudanças na distribuição das sobras eleitorais e a distribuição de candidaturas avulsas. 

Em 1945, lembra Ranulfo, “por uma única vez”, as sobras eleitorais do pleito para a Câmara dos Deputados foram todas entregues ao partido majoritário, que, na época, foi o PSD do general Eurico Gaspar Dutra. “Hoje, você faz uma primeira distribuição e sobram algumas cadeiras que vão ser redistribuídas entre os partidos.  

Na época, fez-se a primeira distribuição, e o que sobrou foi tudo para o PSD”, explica o professor. Ranulfo acrescenta que as candidaturas avulsas foram proibidas porque, ao contrário de 1932, já havia partidos constituídos, como a UDN e o PTB, além do próprio PSD. “Aí já não tem mais candidatura avulsa, como não tem até hoje”, afirma. 

Ainda em vigor, código de 1965 foi enfraquecido por AIs 

O Código de 1932 permaneceu em vigor até julho de 1965, quando foi substituído por uma nova normativa já em meio à ditadura militar. Mesmo editado sob um regime de exceção, o Código Eleitoral de 1965 ainda está em vigência. “É um código que repete muita coisa parecida com o que havia no de 1932, mas não podemos esquecer que é um código da ditadura militar. Então, ele tem, por exemplo, um reforço da figura ainda do corregedor ou de aspectos repressivos, mas a gente não tinha uma atuação da Justiça Eleitoral muito clara”, aponta Gresta. 

Mas as principais intervenções da cúpula militar no processo eleitoral foram realizadas por meio de Atos Institucionais (AIs). Três meses após a edição do Código Eleitoral de 1965, o general Humberto Castello Branco extinguiu o pluripartidarismo a partir do AI-2. “O sistema eleitoral não é extinto com o golpe de 1964. Ele se mantém. Em 1965 é que os partidos vão ser extintos e, aí, vão ser criados a Aliança Renovadora Nacional (Arena) e o MDB. (...) O sistema partidário sobrevive a 1964. Inclusive, chega a ter eleição para governador em 1965, mas os resultados desagradam aos militares, e a eleição é anulada”, pondera Ranulfo.  

Além do bipartidarismo, o AI-2 proibiu as eleições diretas para a presidência da República e para os governos de Estado. “Onde tinha eleição direta? Só nos municípios que não fossem capitais e Áreas de Segurança Nacional (ASNs)”, detalha o professor do Departamento de Ciência Política da UFMG. 

O pluripartidarismo foi retomado apenas quando o general João Figueiredo editou a Lei Orgânica dos Partidos Políticos, em 1979. “Os partidos vão sendo criados a partir de 1980. O Figueiredo extingue Arena e MDB e autoriza a criação de novos partidos, mas aqueles comunistas ainda estavam proibidos”, lembra Ranulfo. A Lei Orgânica dos Partidos restringia a ação dos partidos em âmbito nacional, “sem vinculação, de qualquer natureza, com governos, entidades ou partidos estrangeiros”. 

Processo deixa de ser centrado nas regras do código 

Embora o Código Eleitoral de 1965 siga em vigor, a Constituição de 1988 oferece nova perspectiva de atuação para a Justiça Eleitoral, o que, de acordo com Gresta, congrega um perfil bem mais complexo do que aquele previsto originalmente pelo Código de 1932, por exemplo.  

Posteriormente, acrescenta Gresta, há a sanção de uma série de leis para disciplinar ilícitos eleitorais, como, por exemplo, a captação ilícita de sufrágio – a popular compra de votos. “Aqui, nós já estamos falando em punições que se preocupam exatamente em preservar o resultado eleitoral legítimo (...), o que, do ponto de vista do processo eleitoral, é muito mais importante do que uma punição penal”, pontua a doutora em direito político.  

Ao contrário de antes da Constituição de 1988, o processo eleitoral, hoje, já não é muito centrado em um código, observa Gresta. “A opção que se fez foi sempre pela edição de outras leis, e a gente vai então interpretar a partir desse conjunto”, acrescenta a servidora da Justiça Eleitoral.  

A professora da Faculdade de Direito da PUC Minas Luciana Nepomuceno aponta que as leis eleitorais construídas após a redemocratização buscaram justamente regulamentar pontos que não são abordados pelo Código de 1965. “Temos que lembrar que, em 1965, nós estávamos em um período de exceção, durante o Regime Militar. Só por esse marco histórico, temos que lembrar que vários dos seus dispositivos não encontraram correspondência ou consonância com a Constituição da República de 1988”, pontua Nepomuceno. 

Pequenas reformas ou ampla mudança na legislação? 

O caráter esparso das leis eleitorais pós-Constituição de 1988 levou a deputada Margarete Coelho (PP-PI) a propor um novo código eleitoral a fim de compilá-las – PLP 112/2021. Luciana Nepomuceno, aliás, trabalhou na elaboração da proposta. “Ainda posso citar a Lei Geral de Proteção de Dados e o Código de Processo Civil, que são normas posteriores, mas são aplicáveis também ao nosso processo eleitoral. Essa defasagem do Código Eleitoral de 1965 é prejudicial à nossa democracia”, argumenta a professora. 

Luciana defende que a segurança jurídica das eleições passa também pelo conjunto normativo. “Já passou da hora de termos um novo código que compile todas essas regras e seja consentâneo com a atualidade. A gente não falava em 1965 em fake news, em violência política contra a mulher, em abuso de poder religioso etc. ”, explica ela. 

A professora da Faculdade de Direito exemplifica que, quando se entra como uma ação eleitoral, tem que se recorrer à Lei das Inelegibilidades, não ao Código Eleitoral de 1965, porque ele não traz o procedimento. “Com isso, o que acontece atualmente? Às vésperas de todos os anos de eleições, o Congresso faz reformas pontuais, seja no Código Eleitoral ou nas leis especiais – como a das federações partidárias. Então, vai sofrendo uma colcha de retalhos que só prejudica a interpretação do eleitor e dos operadores do direito”, alega Nepomuceno.  

Avaliação e critícas 

Roberta Maia Gresta elogia os esforços para a sistematização das normas eleitorais na construção do projeto para um novo código, assim como a adequação das leis ao Código de Processo Civil, em vigor desde 2015. “Temos avanço na regulamentação dos crimes eleitorais, agora com uma visão bem mais democrática, com um perfil de não ficar punindo às vezes condutas irrelevantes, mas trazendo outros crimes que possam sim ser mais relevantes, como a própria regulamentação das fake news”.  

No entanto, Gresta enumera três críticas à proposta em tramitação no Congresso. A primeira diz respeito ao prazo de registro de candidaturas, que, em relação ao atual, 15 de agosto, é antecipado em apenas um dia.  

A segunda, acrescenta a professora, são as alterações propostas para o sistema de prestação de contas dos partidos políticos. “Acredito que muita coisa, sim, precisava ser mais bem elaborada para que o controle não tivesse um rigor excessivo, mas a opção do Congresso foi tirar praticamente do controle da Justiça Eleitoral as contas dos partidos políticos. A proposta é, por uma informação que hoje é prestada apenas à Receita, vai ser enviado um extrato e a Justiça Eleitoral vai ter que julgar a partir desse extrato”, explica.  

Já a terceira, por fim, é a possibilidade de fim das consultas ao TSE, o que também está previsto pelo PLP 112/2021. As consultas são uma espécie de perguntas em tese levadas até a Corte para uma decisão. Gresta cita como exemplo uma consulta feita pela deputada federal Benedita da Silva (PT) a respeito da distribuição de recursos públicos entre candidaturas brancas e negras.  

O PLP 112/2021 foi aprovado pela Câmara dos Deputados em setembro de 2021. No entanto, a proposta ainda precisa passar pelo crivo do Senado. Até havia a expectativa de que o projeto fosse aprovado pelo Congresso Nacional um ano antes das eleições de 2022 para já estar em vigor, o que não aconteceu. Agora, a proposta pode entrar em vigor apenas nas eleições municipais de 2024.