Grandes entrevistas

Ex-ministro Carlos Ayres Britto vê protagonismo sem ativismo no STF

Segundo ele, a presença do Judiciário no cotidiano brasileiro é sinal de que a democracia está se aperfeiçoando

Por Lucas Ragazzi
Publicado em 28 de janeiro de 2019 | 03:00
 
 
 
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Ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, Carlos Ayres Britto analisa o protagonismo do Judiciário no cotidiano do brasileiro e sentencia: é sinal de que a democracia no país está se aperfeiçoando: “O Poder Judiciário é aquela instância estatal que dá a última palavra em tudo”. Ayres Britto defende que o Judiciário seja técnico e independente ao analisar as leis, mesmo que, em alguns momentos, manifestações de juízes pareçam ativismo, o que ele condena. O magistrado afirma que gostaria que Sergio Moro continuasse à frente da Lava Jato, mas acredita que a atuação dele no Executivo pode surpreender.

O Judiciário tem tido certo protagonismo no cotidiano brasileiro nos últimos anos. Na sua avaliação, isso é mais positivo ou negativo?

Acho que é inevitável, faz parte do processo civilizatória e de aperfeiçoamento da nossa democracia, porque, pela Constituição, tudo começa com o Legislativo e termina com o Judiciário. Logo, o Poder Judiciário é aquela instância estatal que dá a última palavra em tudo. Metaforicamente, é a embocadura de todos os conflitos, uma espécie de âncora de confiabilidade do país. Em todo país civilizado, não se pode impedir a imprensa de falar primeiro nem o Judiciário de falar por último. Esse protagonismo do Judiciário corresponde à dinâmica democrática de um Estado soberano, não há como evitar. Daí porque o Judiciário é independente dos outros dois Poderes, busca harmonia, mas, no limite, o que prevalece é a independência dele.

Junto desse protagonismo, temos visto o aumento de ataques nas redes sociais e provocações a juízes, desembargadores e ministros. Isso faz parte? Ou é sinal de retrocesso no entendimento do papel do Judiciário pela sociedade?

Esse protagonismo pode se dar em duas dimensões. Uma é o Judiciário sendo proativo no desempenho de sua função, interpretando com tecnalidade e independência a Constituição e as leis. E buscando, ainda, extrair da legislações todas as angulações normativas possíveis. Então, o Judiciário não quer ficar aquém no que, no direito, se contém de propriedade normativa. A segunda dimensão é quando o Judiciário extrapola; se ele não deve ficar aquém das propriedades normativas, não pode ir além também. Quando ele vai além, ele usurpa a função dos outros Poderes, sobretudo do Legislativo. Aí, ele se torna ativista. O ativismo é um desempenho inconstitucional da própria função. Esse protagonismo tem essas duas vertentes. A proatividade, que é correta, e o ativismo, incorreto juridicamente. Agora, esse comportamento social de hostilidade e insulto, de ameaças, não é correto. É preciso entender que o Judiciário é um Poder soberano, os juízes não podem trabalhar debaixo de intimidações. Ninguém, aliás, deve trabalhar assim, ainda menos quem faz a intermediação dos conflitos e possibilita a todas as pessoas o exercício do maior de todos os direitos: o acesso ao Judiciário.

Pela sua experiência, esses casos de ofensas a membros do Judiciário vêm piorando e se tornando mais comuns? Ou sempre foi assim?

Isso piorou pelo seguinte: hoje há uma democracia em plenitude, e isso é, ao mesmo tempo, liberdade de expressão em plenitude, liberdade de acesso à informação em plenitude. Então, os cidadãos hoje se inteiram mais rapidamente e mais inteiramente das coisas, e isso é uma experiência recente no Brasil. Muitas vezes, a pessoa emponderada com a informação não sabe o que fazer com ela e começa a querer resolver por conta própria os problemas do país e os próprios. É uma fase que estamos atravessando. O emponderamento do indivíduo nesse plano da comunicabilidade, da informação sobre tudo e todos, não está sendo bem administrado. Mas isso vai passar, a poeira vai assentar. Nós teremos um manejo dessas ferramentas de internet, eletrônicas, de vida online, vamos ter a oportunidade de separar o joio do trigo. Administrar com mais racionalidade esse empoderamento, sem precisar ir às vias de fato, ir ao desacato.

Temos acompanhado também casos complexos de pessoas públicas ameaçadas, atacadas, algumas até deixando o país. Faz parte dessa fase que você citou?

Faz parte desse torvelinho de vida coletiva de perplexidade. É uma época de efervescência jurídica, política, social, cultural. Mas é no tranco da carroça que as abóboras se ajeitam, nós estamos de certa forma fazendo uma espécie de chamamento do feito social à ordem, chamar o processo judicial à ordem. No Nordeste, nós chamamos isso também de “freio de arrumação”. Não é para parar nada, não. É para solavancar.

O Judiciário brasileiro precisa também desse solavanco? Talvez alguma reforma constitucional para dar celeridade e redistribuir atribuições.

O Judiciário vem passando também por uma autoanálise, uma autocensura. Ele vem se autocriticando e buscando uma administração endógena, mais racional, mais obediente a métodos lógicos de trabalho. Por exemplo, é símbolo dessa necessidade de imprimir ao Judiciário uma concepção, um método de gestão, tudo mais racionalizado. O Judiciário tende a melhorar com isso, a ser mais rápido, até para hierarquizar a importância de certas questões na perspectiva de uma resposta decisória mais rápida. Por exemplo, pense que, diante de um processo de improbidade administrativa, de corrupção, a prioridade na tramitação tem que ser maior. O servidor público é servidor do público, é aquele que escolhe uma carreira pública na perspectiva de servir a população como um todo. O servidor público tem a obrigação da fidelidade a esse mesmo público que serve. Se ele se desvia na conduta, deve ser processado e julgado com muito mais rapidez do que outra pessoa qualquer. Acho que falta isso.

Você comentou sobre essa autoanálise do Judiciário, mas temos visto muitas decisões conflitantes entre ministros, principalmente sobre a prisão em segunda instância. Toda hora um derruba a decisão do outro, uma decisão antiga. Isso é normal?

Temos nos tribunais um número plural de membros, são 11 ministros. São 11 experiências de vida, 11 vocações jurídicas, 11 mundividências, cosmovisões, são 11 pares de olhos, a convivência humana se caracteriza pela alteridade, as relações são caracterizadas pela alteridade, cada cabeça uma sentença, como dizem. A divergência, no entender do direito, faz parte da natureza humana. Agora, racionalmente, a Constituição e as leis estabelecem um quórum de votação. O número dos tribunais é sempre ímpar, quase sempre para não haver empate. Esse contraditório conceitual é saudável. Agora, uma vez colhidos os votos e proclamado o resgate, a decisão é não do ministro fulano ou beltrano, é do colegiado, do tribunal como um todo. É o princípio da colegialidade. Muitas decisões no mesmo sentido, reiteradas, formam uma jurisprudência, e aí, como diz o nome, é um modo prudente de ver o direito e manter a estabilidade do direito. Quando conhecemos mais conceitualmente as coisas, tendemos a ver com mais clareza e abrangência e compreensão, temos que entender que esse contraditório, em princípio, é inevitável e saudável porque legitima o processo. Na ditadura, o que se procura implantar é o pensamento único. Quando houver pensamento único, é ditadura. A sociedade é plural. Pluralismo político, diversidade cultural e alteridade individual.

A ida de Sergio Moro para o Ministério da Justiça vai prejudicar a imagem da Lava Jato no futuro?

Pelo protagonismo do Moro na condução da Lava Jato, pela relevância da operação como antídoto e salvaguarda do país, do direito do brasileiro contra os crimes de colarinho-branco, a corrupção, eu preferia que ele continuasse como juiz. Não gosto de ver um membro do Judiciário sair assim, de mala e cuia, para o Executivo. Mas eu posso estar errado, ele pode se revelar um grande ministro e, por outros meios, servir a essa causa do combate à criminalidade. Ele pode me surpreender com um desempenho ainda mais proveitoso para o país.

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