Judiciário

Desembargador insinua que vítima é 'sonsa' em caso de assédio de pastor

Desembargador chamou vítima de sonsa, enquanto outro falou que denúncias de assédio e racismo são modismo. Após repercussão, juiz mudou voto e condenou pastor

Por Renato Alves
Publicado em 27 de março de 2024 | 11:55
 
 
 
normal

Um desembargador chamou de “sonsa” uma suposta vítima de assédio moral e sexual, enquanto outro afirmou que acusações como essas, além de racismo, se tornaram “modismo”. As declarações ocorreram durante uma sessão do Tribunal de Justiça de Goiás (TJGO) que analisa processo que tem como acusado o pastor evangélico Davi Passamani, que já havia sido denunciado por crimes sexuais por outras três mulheres que frequentavam a igreja A Casa, fundada por ele em Goiânia.

“Essa caça aos homens… Daqui a pouco não vai ter nem encontro. Como você vai ter relacionamento com uma mulher, se não tiver um ‘ataque’? Vamos colocar ‘ataque’ entre aspas (...) Ela mesma falou que era sonsa… Se ela não foi muito sonsa”, disse o desembargador Silvânio Divino de Alvarenga.

“Não sei se a gente deve levar a questão moral a ferro e a fogo (…) Nos Estados Unidos eu vi uma situação vexatória, me contaram uma coisa sobre uma determinada empresa que os homens não estavam chamando as mulheres para as festas que aconteciam. Achei isso horrível”, comentou o desembargador. Ele, que havia negado o pedido da defesa, encerrou a sessão pedindo vista – mais tempo para analisar o caso. 

Em outro momento da sessão, o desembargador Jeová Sardinha disse se sentir "cético" com relação a denúncias de assédio sexual, moral, violência de gênero e racismo. As pautas, segundo ele, se tornaram "modismo".

“Hoje eu, particularmente, tenho uma preocupação muito séria com o tal do assédio moral como gênero, sexual como espécie do gênero e racismo. Então esses temas viraram um modismo. Não é à toa, não é brincadeira, que estão sendo usados e explorados com muita frequência”, disse Sardinha. 

As falas ocorreram durante uma sessão da 6ª Câmara Cível, em 19 de março. Na ocasião, os desembargadores questionaram também se a vítima e o namorado dela não teriam planejado uma situação para entrar com uma ação contra o pastor.  

Estava em pauta uma denúncia de assédio sexual e assédio moral contra Davi Passamani. Na ocorrência policial, a jovem relatou que o pastor enviou uma mensagem de texto para perguntar se estava tudo bem com ela, diante do término do namoro. Em seguida, Davi pediu para ela fazer algumas confissões e passou a narrar uma fantasia sexual. Ainda segundo a denunciante, ele fez uma chamada de vídeo, mostrou o pênis, desligou a câmera e iniciou uma masturbação. Então, desligou o celular e enviou novas mensagens. Ela não respondeu.

Após registrar ocorrência e expor o caso nas redes sociais, a jovem relatou que teve de trocar de igreja, porque outros membros a culparam pela conduta.

Após repercussão das falas, desembargador muda voto e condena pastor 

A queixa criminal foi arquivada pelo Ministério Público de Goiás (MPGO) por falta de provas, em 2020. Com isso, no mesmo ano a defesa entrou com uma ação cível para reparação de danos morais. A análise do caso foi retomada na última terça-feira (26). Nela, Silvânio de Alvarenga mudou seu voto sobre o pedido de indenização e assim definiu o caso a favor da vítima. O placar final foi de três votos a dois. A defesa pode recorrer.

Em seu voto, Silvânio disse entender que o comportamento de Davi Passamani foi “reprovável e reiterado”. Além disso, o desembargador apontou que o líder religioso tinha uma posição de ascendência e poder sobre a vítima.

Mas Silvânio reclamou da repercussão de suas falas na sessão anterior. “Estamos numa época das trevas, até a liberdade de pensamento está sendo abalada por certo radicalismo”, disse, após o voto. “Esse contraditório é sagrado, está na nossa Constituição e a gente tem que preservar isso daí”, completou.

O desembargador assim justificou as declarações anteriores. “Eu perguntei ‘será se ela mesma é sonsa, como ela mesma afirmou?’. (…). Sonsa seria uma pessoa ingênua, palavras da própria vítima. Me falaram que isso causou polêmica, não vejo motivo para isso. Nós estávamos discutindo a matéria.”

Por fim, Silvânio disse que suas falas chamaram a atenção da imprensa e que isso foi importante, pois a imprensa tem o papel de fiscalizar os poderes. Antes da segunda sessão, em nota, ele alegou que havia feito “questionamentos na busca do amadurecimento e da compreensão integral do caso em questão”, por meio de “hipóteses e situações hipotéticas”, para “explorar a verdade real do processo, garantindo que nenhum aspecto seja negligenciado de ambos os lados”.

Também por meio de nota divulgada após a primeira sessão do caso, o desembargador Jeová Sardinha disse que reconhece a seriedade e a “prevalência do machismo e do racismo em nossa sociedade”, e afirmou que a intenção, naquele momento, era ressaltar “a importância de uma análise cuidadosa e contextual de cada caso, para evitar julgamentos precipitados e erros”.

Já a advogada da vítima, Taísa Steter disse ter ficado satisfeita com a “reparação” na segunda sessão, pois a cliente havia sofrido “um julgamento moral” sendo colocada “na posição de ter contribuído para a ocorrência da violência”. 

“Desqualificar a vítima e enaltecer as falas do violentador é uma prática do senso comum. Contudo, os desembargadores não fazem parte do senso comum. Pelo contrário. Eles têm o dever de serem imparciais e julgarem o caso conforme as provas do processo, afastando vieses ceticistas ou crenças demasiadas”, afirmou.

Pastor foi acusado por outras mulheres

Esse não é o único caso de importunação sexual que tem o mesmo pastor como acusado. A primeira denúncia foi tornada pública em março de 2020. Uma veterinária que frequentava a igreja A Casa disse que o religioso perguntou sobre a vida sexual dela e disse que queria sentir seu beijo, pois havia tido um sonho erótico com ela. No mês seguinte, outra mulher procurou a polícia para denunciar o pastor pelo mesmo crime.

Com a repercussão das denúncias, o pastor publicou um vídeo nas redes sociais negando os crimes e pedindo desculpas à família e aos fiéis. Na época, a igreja A Casa também se pronunciou, dizendo que estava apurando o caso e que Passamani estava afastado de funções “há semanas” para “tratamento médico e cuidados em família”.

A Justiça de Goiás determinou o arquivamento do inquérito policial com as duas denúncias. A decisão atendeu requerimento do Ministério Público, que apontou falta de provas. Mas, em junho de 2020, o MPGO denunciou o pastor por outro crime de importunação sexual. Desta vez, a denúncia referia-se ao caso de uma vítima de janeiro de 2019. O processo tramita em segredo de Justiça.

 

Notícias exclusivas e ilimitadas

O TEMPO reforça o compromisso com o jornalismo profissional e de qualidade.

Nossa redação produz diariamente informação responsável e que você pode confiar. Fique bem informado!