Apresentado o relatório da CPI da Covid-19, que ainda deve ser modificado até que seja votado na próxima terça-feira, o país passa a questionar o que pode acontecer de agora em diante. Em especial, com o presidente da República, Jair Bolsonaro. O chefe do Executivo é acusado de ter praticado uma extensa lista de crimes durante a gestão da pandemia, mas uma punição, ao menos no curto prazo, é bastante improvável no atual cenário. Bolsonaro, porém, não será presidente para sempre, e no futuro essa conta ainda poderá lhe ser cobrada.

Na lista apresentada pelo relator Renan Calheiros (MDB-AL), com o aval do grupo majoritário da CPI, são imputados indícios de crimes por parte do presidente que podem ser divididos em três tipos: de responsabilidade, comuns e contra a humanidade. Eventuais julgamentos e punições por essas condutas têm caminhos diferentes, mas todos bastante tortuosos.

No que diz respeito aos crimes de responsabilidade, Bolsonaro já está acostumado a ser acusado. Há mais de uma centena de pedidos de impeachment contra ele na Câmara dos Deputados. Todos estão na gaveta de Arthur Lira (PP-AL), presidente da Casa. Agora, as acusações de violação de direito social e de incompatibilidade com a dignidade, honra e decoro do cargo vão para essa mesma fila, que não anda pelo fato de que Lira é aliado do presidente. Ainda que fosse diferente, hoje dificilmente haveria votos no plenário para que o assunto avançasse. São necessários 342 em 513 e a oposição não os tem. Precisaria haver uma pressão muito grande e sonora da sociedade para que isso mudasse. Hoje, não há essa perspectiva e, faltando menos de um ano para as eleições, ninguém acredita que um processo de impeachment nascerá.

Quanto aos crimes comuns citados no relatório (epidemia com resultado morte, infração de medida sanitária preventiva, charlatanismo, incitação ao crime, falsificação de documento particular, emprego irregular de verbas públicas e prevaricação), o caminho é ainda mais complicado para quem deseja a punição do presidente. O primeiro passo para que Bolsonaro seja julgado e condenado passa pelas mãos de outro aliado: Augusto Aras, procurador geral da República. Seria dele a responsabilidade de denunciar o presidente. Na improvável hipótese de fazê-lo, deveria ainda haver, na sequência, uma autorização por parte da Câmara dos Deputados. Seriam necessários também 342 votos de deputados para que o presidente fosse julgado por um crime comum relacionado ao cargo, por conta da imunidade em razão da função. 

Já apostando que Augusto Aras possa ficar inerte, sem denunciar o presidente, a CPI fala em propor uma ação privada subsidiária da ação pública. Isso está previsto no inciso LIX do artigo 5º da Constituição. Quando o órgão público responsável pela denúncia não toma providências, pode a própria vítima representar contra o acusado. Neste caso, como há o crime de epidemia na lista, por exemplo, todos os brasileiros são vítimas. Mas ainda que não fossem, a associação de familiares de vítimas poderia fazer essa denúncia. Seria inédito, mas possível. Só que, daí em diante, o caminho volta a ser complexo para que espera uma punição. O Supremo Tribunal Federal (STF) faria uma avaliação da admissibilidade do processo, mas depois, igualmente, seria necessário que 342 deputados autorizassem o julgamento do presidente. Improvável.

Por fim, há no relatório apontamento de crimes contra a humanidade. Esses casos serão remetidos ao Tribunal Penal Internacional (TPI), em Haia. Por lá, não haveria espaço para nenhuma interferência política do presidente. Mas isso não deixa uma punição necessariamente mais próxima. O TPI demora muito nos processos de julgamento. A maior parte das coisas que chega por lá fica pelo caminho. Se decidir julgar o caso de Bolsonaro, serão anos de apurações e debates até um veredicto que pode, sim, levar a uma punição pesada, de décadas de prisão.

Diante de barreiras tão difíceis de superar, faz sentido então que, como disse o filho Flávio Bolsonaro, o presidente esteja gargalhando com o relatório? Acho que não. Por um motivo muito simples: ele não será presidente para sempre e esses casos, que costumam demorar bastante, vão continuar assombrando o hoje chefe do Executivo por muitos anos. Se o presidente não for reeleito em 2022, pode ver essas ações descerem a instâncias inferiores, cair nas mãos de juízes e procuradores amargurados com as represálias à Lava Jato ou com o controle de Augusto Aras. E aí, diante de tantas denúncias, é possível que alguma ou algumas delas prosperem, levando a uma inevitável prisão no futuro, não apenas por essas imputações colocadas pela CPI mas também por outras já aventadas ao longo do mandato. A eleição de 2022, justamente pela capacidade de mudar ou não esse quadro de blindagem que hoje tem o presidente, é um tudo ou nada para ele. Agora, mais do que antes.