Ao menos 53 imóveis funcionais de propriedade da União estão ocupados irregularmente em Brasília por ex-funcionários federais, que incorporaram os apartamentos aos seus bens sem pagar pela compra. Destes, 35 pessoas aparecem no Portal da Transparência com “cargo inexistente” ou “sem informação”. Na tentativa de reintegrar os imóveis ao patrimônio público, a União move ações de reintegração de posse, que se transformaram em batalhas nos tribunais.

Alguns desses ex-funcionários, inclusive, já morreram, e os apartamentos ficaram sob o domínio de familiares (cônjuges ou filhos).

Funcionários públicos com cargos especiais podem pedir um imóvel da União para morar – sem pagar aluguel – enquanto estiverem desempenhando sua função junto ao governo.

Atualmente, são 1.413 moradias, mas 1.118 estão ocupadas, segundo dados do governo federal atualizados pela última vez entre março e junho deste ano.

Os apartamentos valem entre R$ 1 milhão e R$ 1,5 milhão, em áreas nobres da capital federal (95% das moradias estão na Asa Sul e na Asa Norte de Brasília).

Resta a esses servidores arcar com contas básicas, como condomínio, água e luz. Para evitar ter despesas com inadimplências, a União tenta, também via Justiça, conseguir antecipação de cobranças futuras dessas taxas, caso algum servidor deixe de pagar as contas, o que também ocorre.

No Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF–1) e em tribunais superiores, magistrados sentenciaram de duas maneiras: acataram o pedido de reintegração de posse formulado pela União ou julgaram que os ex-funcionários têm direito de permanecer nos imóveis.

A segunda decisão tem base a partir de uma lei de 1990. Naquele ano, funcionários públicos que ocupavam imóveis funcionais tiveram opção de compra. Interessados em adquirir o imóvel enviaram pedido à União ou entraram na Justiça para garantir que o governo federal deveria vender os imóveis. Há quem alegue não ter recebido resposta sobre valores e como proceder para adquirir o apartamento. Assim, continuaram a viver no local. Para alguns juízes que sentenciaram ações do tipo, está claro, também, que há irresponsabilidade por parte da União na falta de fiscalização. De acordo com a lei, após perder o vínculo com o governo, o funcionário tem prazo de 30 dias para deixar a moradia.

Para não deixarem os imóveis, ex-servidores também tentam apelar para questões “humanitárias” junto à Justiça. Um deles vive há mais de 30 anos em um dos apartamentos.

Em sua defesa, disse que a situação familiar era “extremamente grave”, porque tinha que cuidar da mãe, da mulher e de um filho.

“As razões humanitárias que levaram o Poder Público a permitir a ocupação por longos 32 anos já se encontraram superadas. A genitora e a esposa doente já morreu. Dois filhos são adultos e independentes. Resta apenas como seu dependente o filho inválido. Depois de tanto tempo morando de graça, o réu já tem condições de adquirir ou alugar uma moradia por sua própria conta”, sentenciou um juiz federal.

A partir do pedido de reintegração de posse aceito, os servidores conseguem liminares em tribunais superiores para, ao menos, deixaram o local quando a ação transitar em julgado – o que faz com que o tempo de permanência aumente.

A Secretaria do Patrimônio da União (SPU) afirmou, em nota, que “já expediu notificações a todos os ocupantes de imóveis funcionais para identificar eventuais irregularidades e para acelerar os processos de reintegração de posse em andamento”.

‘Essa é a ponta do iceberg’, afirma especialista

A fiscalização de imóveis funcionais deve ser mais rígida para evitar ocupações ilegais, aponta o engenheiro e mestre em finanças públicas pela Fundação Getulio Vargas (FGV) Amir Khair.

De acordo com ele, se houvesse gestão na administração pública, não haveria problemas como as 53 ocupações irregulares de apartamentos da União, que acabam com ações judiciais.

Para ele, não adianta fazer grandes reformas para cobrir o rombo financeiro do Estado se os pequenos detalhes são deixados para trás. “A sociedade está arcando com muitos valores de recursos indevidos. Se fizer gestão, a coisa muda. Só se fala em rombo. Pequenas coisas, como essa (imóveis funcionais), são coisas de detalhes. São valores baixos envolvidos, mas é um exemplo. Você soma todos e dá um baita de um valor”, afirmou.

Khair não é otimista em relação a uma solução rápida dos problemas, que podem ser vistos como pequenos ao se comparar com outros gastos exorbitantes da má gestão pública. “Isso não vai mudar tão cedo, porque não há atenção para essas coisas. Se estender para outras áreas de patrimônio público, você vai ver quantos imóveis estão ocupados irregularmente. É a ponta do iceberg, uma pontinha do iceberg”, disse.

O mestre em finanças públicas também aponta as regalias do funcionalismo público. Segundo ele, enquanto há muitas pessoas sem lugar para morar (leia ao lado, abaixo), outras se aproveitam de “mordomias” pagas pelo contribuinte. “Aquilo que muitas pessoas não têm, que é o imóvel para morar, essas pessoas têm uma mordomia paga por todos nós. No fundo, o contribuinte está pagando”, afirmou.

Para concluir, Khair aponta que os principais prejudicados com todo o desperdício de verba pública são as famílias de baixa renda do país, que são responsáveis por cerca de 80% do que é arrecado de impostos no Brasil.

“Quem paga impostos, em geral, é classe média, classe média baixa. Ou seja, muitas pessoas que dependem do Estado para educação, saúde e não têm recursos para isso. Então, quando você usa mal o setor público, prejudica essas pessoas”, disse.

Governo quer lucro com vendas milionárias

Na tentativa de fazer caixa, a União tem 29 imóveis disponíveis para compra em diversos Estados do Brasil – Minas Gerais não está na lista. Há, por exemplo, apartamentos em Ipanema e no Leblon, no Rio de Janeiro. No próximo dia 12 de agosto, a União tentará arrecadar no mínimo R$ 140,3 milhões com a venda de um galpão comercial em Barueri, na Grande São Paulo. Em um site mantido pelo governo, há também outros 28 imóveis que terão o mesmo destino.

Para participar, o interessado precisa se atentar aos editais publicados pela Secretaria do Patrimônio da União (SPU). “O objetivo do plano é reduzir gastos e aumentar a arrecadação com a venda dos bens que estão desocupados e foram declarados inservíveis para o uso público. A licitação será realizada na modalidade concorrência pública, e quem quiser tomar parte deve apresentar uma proposta por imóvel”, diz a secretaria. Os interessados precisam deixar um caução no valor de 5% ao imóvel. Caso a proposta não seja aceita, o dinheiro é devolvido.

Déficit de moradia popular sobe 7% em 10 anos

Enquanto alguns se aproveitam da “mordomia” de viver em imóveis funcionais irregularmente há anos, o número de pessoas que precisam de uma casa para viver subiu 7% em dez anos no Brasil, segundo último estudo da Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc), em parceria com a Fundação Getulio Vargas (FGV).

Em 2007, o número era de 7,2 milhões de pessoas. Já em 2017, o salto foi para 7,7 milhões. Pessoas que recebem até um salário mínimo representam 40,6% desse número, mostra o estudo. De um a três salários mínimos, 51,1% precisam de uma moradia. O estudo mostra também que mais de 950 mil dessas pessoas vivem em domicílios que estão em situações precárias.

Morosidade

Etapa. Após notificar o ex-servidor a sair em 30 dias do apartamento funcional, o próximo passo da União é entrar com processo de reintegração de posse ao final do prazo, o que demora. Para se ter uma ideia, ações de 2012 ainda não tiveram um desfecho.