Um estudo de 2020 que citava a hidroxicloroquina (ou cloroquina) como um tratamento eficaz para a Covid-19 foi retratado nesta semana, quatro anos e meio após sua publicação. Liderada pelo microbiólogo francês Didier Raoult, na Hospital-University Institute Mediterranean Infection (IHU), em Marselha, na Fança, a publicação foi marcada por controvérsias e desacreditada após investigação de autoridades no país europeu.

O artigo “Hidroxicloroquina e azitromicina como tratamento de COVID-19: resultados de um ensaio clínico aberto e não randomizado” foi criticado por pesquisadores de diversos países, que questionaram a qualidade dos dados e a confiabilidade do processo ético do estudo.

A retratação, enviada à imprensa no último dia 17 pela Sociedade Francesa de Farmacologia e Terapêutica (SFPT, em francês), cita “má conduta científica, manipulação de dados e preconceito na interpretação dos resultados, visando apresentar falsamente a hidroxicloroquina como eficaz”. Essa é a 28ª retratação de Didier Raoult, que ficou conhecido mundialmente durante a pandemia da Covid-19 e, agora, está aposentado.

“Estudos rigorosos realizados posteriormente demonstraram por unanimidade a ineficácia da hidroxicloroquina contra a COVID-19. A sua utilização também foi associada a efeitos adversos graves, incluindo oito paragens cardíacas e cerca de uma centena de arritmias cardíacas notificadas na farmacovigilância em menos de um mês de utilização em França. Um excesso de mortalidade de 11% também foi encontrado em diversas metanálises de ensaios clínicos randomizados”, escreveu a SFPT. A retratação, na íntegra, pode ser lida abaixo.

A entidade também destacou que três co-autores do estudo pediram, ao longo dos anos, para que seus nomes fossem retirados da publicação. Eles afirmaram ter preocupações em relação aos métodos da pesquisa. Outros cinco, porém, defendem a eficácia do estudo e da cloroquina, uma droga desenvolvida para o tratamento da malária, como uma alternativa para tratar infecções pelo vírus causador da Covid.

Atraso no desenvolvimento de outras drogas

Ole Søgaard, médico do Aarhus Hospital Universitário, na Dinamarca, falou à revista Nature que “o efeito não-intencional mais relevante deste estudo foi retardar parcialmente o desenvolvimento de medicamentos anti-COVID-19 num momento em que a necessidade de tratamentos eficazes era crítica”, afirmou. “O estudo foi claramente conduzido às pressas e não seguiu os padrões científicos e éticos comuns”, concluiu o médico.

Esse foi o artigo mais citado sobre a Covid-19, com mais de 3.400 citações. Também é o segundo estudo de mais referências na história a ser retratado.

Leia a retratação da SFPT, na íntegra

A primeira publicação da IHU Méditerranée Infectiion que contribuiu para a promoção massiva da hidroxicloroquina como tratamento contra a COVID-19, acaba de ser retratada, após anos de controvérsia, por considerações de má conduta científica e ética. 

Assim que foi publicado, este estudo foi fortemente criticado por inúmeras violações de normas científicas e éticas, principalmente no que diz respeito à proteção dos pacientes participantes da pesquisa. Constitui um exemplo claro de má conduta científica, marcada pela manipulação de dados e preconceito na interpretação dos resultados, visando apresentar falsamente a hidroxicloroquina como eficaz.

Estudos rigorosos realizados posteriormente demonstraram por unanimidade a ineficácia da hidroxicloroquina contra a COVID-19. A sua utilização também foi associada a efeitos adversos graves, incluindo oito paradas cardíacas e cerca de uma centena de arritmias cardíacas notificadas na farmacovigilância em menos de um mês de utilização na França. Um excesso de mortalidade de 11% também foi encontrado em diversas metanálises de ensaios clínicos randomizados. 

Este estudo altamente controverso foi a pedra angular de um escândalo global. A promoção dos seus resultados levou à prescrição excessiva de hidroxicloroquina a milhões de pacientes, resultando na assunção de riscos desnecessários para milhões de pessoas e potencialmente em vários milhares de mortes evitáveis. Também levou a um enorme desperdício de recursos e à proliferação de centenas de estudos inúteis, em detrimento da investigação de tratamentos verdadeiramente eficazes.

A retratação do estudo de Gautret, aguardada há quatro anos, constitui um reconhecimento tardio, mas essencial, dos excessos científicos que colocaram os pacientes em perigo. Deverá marcar o início de um questionamento mais amplo do trabalho realizado sob a supervisão do professor Didier Raoult, em particular sobre a hidroxicloroquina. Este trabalho é suspeito de não respeitar padrões éticos e científicos e é, para alguns, objeto de processos judiciais em curso.

Esta sucessão de acontecimentos recorda-nos um ponto essencial em termos de medicamentos: mesmo em tempos de crise sanitária, a prescrição de medicamentos sem provas sólidas de eficácia, fora do quadro rigoroso de ensaios clínicos bem conduzidos, continua a ser inaceitável. Um dos princípios fundamentais da medicina – primum non nocere (“primeiro, não causar dano”) – foi aqui sacrificado, com consequências dramáticas.

O SFPT apela a uma maior vigilância para garantir que a investigação científica e a assistência aos pacientes respeitem em todas as circunstâncias os princípios da ética, do rigor e da transparência para o bem dos pacientes e de toda a população.

17 de dezembro de 2024. - Traduzido do francês.