Vinicius Junior venceu mais uma. Nesta temporada primorosa com a camisa do Real Madrid, que tem tudo para culminar com o prêmio Bola de Ouro, de melhor jogador do mundo, o atacante brasileiro talvez tenha alcançado o maior título da sua vida. “Não sou vítima de racismo. Sou algoz de racista”, define o fluminense de São Gonçalo, ao avaliar a condenação a oito meses de prisão de três torcedores do Valencia, autores de discriminação racial contra o atleta, durante partida no estádio Mestalla, em maio do ano passado.

A punição aplicada pela Justiça da Espanha é inédita naquele país e foi comemorada por diversas autoridades e setores da sociedade brasileira. Contudo, em sua própria casa, Vinicius já havia sido alvo de discriminação por pelo menos duas vezes, quando ainda defendia o Flamengo. Os agressores, porém, passaram ilesos e seguem impunes.

A decisão da Justiça espanhola proferida na segunda-feira (10) juridicamente não tem reflexo no Brasil, por se tratar de países diferentes, mas há a expectativa de que o caso impulsione e fortaleça o combate à discriminação racial em território nacional.

“De fato, a condenação na Espanha não tem repercussão jurídica imediata no Brasil. Por outro lado, há no direito o que se chama de ‘direito comparado’ ou ‘direito alienígena’, que é a utilização de precedentes de questões ocorridas em outros países como referência para a aplicação da lei no Brasil. Analisando por esse lado, temos, sim, um precedente que pode e deve ser levado para os tribunais, para os casos brasileiros", sustenta Gustavo Lopes Pires Souza, mestre em direito desportivo.

"Além disso, pelo tamanho que o Vinicius Júnior tem, pelo que ele representa no mundo, essa repercussão mostra que racismo não é brincadeira, que é crime. Será um grande exemplo para que outras pessoas pensem duas vezes antes de cometer o delito”, acrescenta o advogado. 

Avanço

Andrei Kampff, jornalista e advogado especializado em direito desportivo, tem entendimento semelhante ao do colega. Ele argumenta que a condenação na Espanha deve ser considerada mais uma conquista no avanço da proteção de direitos humanos no esporte na esfera estatal.

“O futebol avançou. Isso gera repercussão. O Brasil tem tipificado o crime de racismo e de injúria racial, a homofobia também foi equiparada ao crime de racismo no STF. Ou seja, temos caminhos legais para combater atitudes discriminatórias no país. Mesmo assim, é sempre importante levantar a voz e cobrar punição para a violação de direitos humanos. A participação de atletas ajuda nesse processo, como mostra o caso de Vini Júnior”, argumenta Kampff.

Embora o Brasil possua mecanismos legais para coibir e punir atos discriminatórios, bem como o Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD) tenha dispositivo para agir de igual forma, na prática, a impunidade ainda grassa por aqui, em relação a casos análogos ao ocorrido com o atacante do Real.

“A lei está aprovada, mas não pegou. No Brasil, não há histórico de prisão e condenação por causa de ofensa racial nos estádios”, pontua Marcelo Medeiros de Carvalho, fundador e diretor executivo do Observatório da Discriminação Racial no Futebol.

Marcelo Carvalho, do Observatório da Discriminação Racial no Futebol

 

Cumprir pena em liberdade

Mesmo condenados a oito meses de prisão, os três torcedores do Valencia que comentaram discriminação racial contra Vinicius Júnior não deverão cumprir a pena na cadeia. Isso porque são réus primários, e a sanção foi inferior a dois anos. Neste caso, a legislação espanhola permite que os culpados cumpram a sentença em liberdade. 

Os condenados também foram beneficiados por um acordo no qual eles reconheceram o crime e por terem pedido desculpas. Por isso, a pena que seria de um ano foi reduzida a oito meses.

A pena aos três torcedores também inclui o banimento de estádios de futebol por dois anos. Além disso, com essa condenação, os três agressores deixam de ser considerados réus primários pela Justiça da Espanha. 

Torcedores do Valencia durante o julgamento na Justiça da Espanha

 

Combate ao racismo passa pela conscientização 

Em maio deste ano, a Fifa anunciou um plano global de combate ao racismo no futebol e recomendou aos 211 países filiados que incorporem a seus códigos disciplinares dispositivos específicos para punir os casos com “sanções próprias e severas”. A entidade definiu cinco pilares para estruturar os trabalhos: regras e sanções, ação em campo, acusações criminais, educação e voz dos jogadores. 

Especialistas apontam que a punição é necessária, mas somente a “educação”, por meio da conscientização sistemática e contínua, será capaz de minar, gradativamente, o preconceito.

“O racismo não vai acabar só com punição. Trata-se de educação, conscientização, e os clubes têm um papel fundamental nisso. Porque, quando se fala por meio do futebol, as pessoas prestam atenção. A maioria dos clubes, porém, não está preocupada com isso. Agem de forma reativa, quando ocorre algum caso”, observa Marcelo Medeiros de Carvalho, fundador e diretor executivo do Observatório da Discriminação Racial no Futebol.

O advogado Gustavo Lopes Pires Souza, mestre em direito desportivo, considera a condenação imposta pela Justiça da Espanha contra os torcedores que ofenderam Vinicius Jr. um marco na luta internacional contra o racismo. “Não só no futebol, não só no esporte, mas como racismo estrutural que temos na sociedade”, define.

Entretanto, ele argumenta que a mudança passa pelo convencimento de que o racismo precisa ser extirpado do meio social. “Precisamos, realmente, educar as crianças, educar as pessoas para que não cometam esse crime”, opina.

Tolerância zero

Quando lançou o plano de combate ao racismo no futebol, o presidente da Fifa, Gianni Infantino, foi duro: “Não podemos mais aceitar o que tem ocorrido. Nossa mensagem às pessoas que se comportam de forma racista é clara: não queremos vocês. Essas pessoas têm de ser excluídas, elas não fazem parte da nossa comunidade nem são parte do futebol”.

O governo brasileiro informou que tem trabalhado em cooperação com as autoridades da Espanha para coibir e reprimir atos e manifestações racistas, bem como para promover políticas de igualdade racial. Por meio de nota, afirmou: “O governo reitera seu repúdio a qualquer manifestação racista e continuará atuando pela proteção e pela promoção dos direitos humanos.”