Entrevista

Sobre o Brasil, Milton Nascimento desabafa: 'Bicho, que pesadelo é esse?'

Bituca, que faz sua primeira live neste domingo, às 18h30, fala sobre a rotina na pandemia, racismo e diz que o país passa por uma tragédia sem parâmetros

Por Bruno Mateus
Publicado em 27 de junho de 2020 | 07:01
 
 
 
normal

Neste domingo (28), às 18h30, para matar a saudade dos fãs, como ele mesmo disse, Milton faz sua primeira live solo neste período da pandemia - antes, havia feito uma participação em um festival internacional de jazz e blues. O show será realizado em sua casa, em Juiz de Fora, cidade com a qual tem uma relação muito próxima - lá, morou na infância, antes de ir para Três Pontas, tem muitos amigos, fez shows memoráveis e fixou residência em 2016.

É no município da Zona da Mata que Bituca, 77, passa seus dias de quarentena, tomando sol e escutando Beatles pela manhã, acompanhando suas redes sociais pelo celular e se acostumando, aos poucos, com a tecnologia. O que ele não naturaliza é o racismo tão presente em nossa sociedade - preconceito que ele já sentiu na pele em diversos momentos da vida, chegando ao ponto de, na infância, ser impedido de entrar no principal clube de Três Pontas. “Eu ficava ouvindo os shows na praça, do lado de fora”, recorda.

Sobre o assunto, Milton busca forças e ensinamentos na cultura indígena. Em maio de 2010, no palco de um evento em Campo Grande, ele foi batizado por lideranças Guarani-Kaiowá na capital mato-grossense. Eles passaram a chamá-lo Ava Nheyeyru Iyi Yvy Renhoi, que, em português, significa Semente da Terra, mesmo nome de uma turnê realizada pelo músico alguns anos depois.

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Ensaiando pra fazer uma live bem linda pra vocês! Quem aí tá ansioso pro domingo?

Uma publicação compartilhada por Milton Nascimento (@miltonbitucanascimento) em

Bituca também está atento e preocupado com os desdobramentos da política brasileira: classifica como “chocante” a fala do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, sobre regras ambientais. Para ele, o governo tem “desprezo absoluto pela arte, pela tradição e pela história do próprio país”. “É uma tragédia sem parâmetros”, afirma.

No fim de 2019, você deu uma entrevista e disse que andava "meio triste com a vida". Como você tem lidado com a pandemia, com a crise humanitária, social e econômica pela qual passamos e as notícias ruins que pipocam todos os dias nos jornais? 

Acho que com a única coisa que a gente tem nesse momento, a arte. Meu cotidiano se resume em violão, TV, filmes e, às vezes, pego algum livro e vou lendo ao longo do dia, além das lives dos amigos, que também tenho visto bastante.

Por falar em lives, como foram os ensaios para o show que você faz amanhã?

Então, por enquanto eu tenho ensaiado sozinho aqui em casa. Mas, para a live, a gente convidou meu maestro Wilson Lopes, que vai tocar os instrumentos de corda, tipo violão, guitarra, viola... E teremos também um pianista de BH, o Christiano Caldas, que, além do piano, vai tocar acordeom. E o negócio é que esse repertório vai ser todo escolhido pelos fãs, da primeira até a última música. A gente tá fazendo uma campanha através de nossas redes e vamos selecionar as mais pedidas. Mas, pelo que já recebemos até agora, vai ser um setlist com os maiores sucessos.

Muitos artistas nacionais e internacionais de diversos estilos têm feito lives durante a quarentena. Você acha que esse é um formato que veio para ficar? 

Já vi várias lives neste período de pandemia aqui em casa, é a única forma que a gente tem de ver um show hoje em dia, né? E eu acho que, enquanto a gente tiver nessa crise de saúde, vai ser assim.

Para se comunicar, ouvir música, compor, enfim, você tem intimidade com a tecnologia? 

Atualmente, muito mais, mas nem sempre foi assim. Essa mudança começou quando eu vim morar em Juiz de Fora com meu filho, Augusto. E, pela primeira vez, tenho um celular com meu próprio número, e é nele também que acompanho o pessoal que segue minhas redes. Gosto muito de saber deles, o que estão pensando...

Você já foi vítima de racismo na infância, na carreira, já se posicionou contra esse tipo de preconceito diversas vezes. Devido aos recentes acontecimentos, houve diversos protestos pelo mundo e artistas e outras personalidades levantaram suas vozes contra o racismo. 

Toda essa mobilização pelo mundo é uma prova de que nada disso ia ficar em vão. Mas é muito importante que esse movimento agora ganhe mais força. É preciso continuar, porque é só o começo. Minha vida foi marcada pelo racismo, e isso desde a minha infância em Três Pontas, onde nem no clube da cidade me deixavam entrar. Eu ficava ouvindo os shows na praça, do lado de fora. E esse é só um único fato. O racismo, infelizmente, está aí até hoje, em todos os lugares e, aqui no Brasil, cada dia mais escancarado.

Como sua relação com a cultura indígena influenciou seu pensamento sobre o assunto? 

A cultura indígena é parte da minha vida há muito tempo. E essa é outra preocupação seríssima que eu tenho agora. É chocante saber que temos no governo um ministro do meio ambiente que quer se aproveitar da pandemia para, como ele mesmo disse lá naquela reunião maluca, aquele negócio de aproveitar “a oportunidade que a imprensa está dando (porque só fala de Covid-19) e ir passando a boiada e mudando todo o regramento”. Bicho, que pesadelo é esse?

O ator Mário Frias foi nomeado recentemente para a Secretaria Especial de Cultura, a quinta pessoa a ocupar o cargo em 17 meses de governo Bolsonaro. Que mensagem isso te passa? 

Antes fosse só essa a preocupação, pelo contrário. A tragédia é muito maior que isso. Temos um governo que não confia em nada que seja relacionado à ciência. Um governo que faz piada com a palavra dos cientistas e, além de todo esse absurdo, os caras ainda têm um desprezo absoluto pela arte, pela tradição e pela história do próprio país. É uma tragédia sem parâmetro.

Programe-se 

Com o nome de “Num domingo qualquer, qualquer hora”, inspirado em trecho da clássica “Nada Será Como Antes”, lançada em 1972, no álbum “Clube da Esquina”, o show será transmitido, às 18h30, pelo canal de Bituca no YouTube. O repertório foi escolhido pelos fãs.

Homenagem

Amanhã, em Três Pontas, será reinaugurado o Centro Cultural Milton Nascimento, que passou por reformas estruturais e de equipamentos. Para marcar a data, o Facebook e o YouTube da prefeitura da cidade transmitem, às 20h, o espetáculo “De Coisas Que Aprendi Com Elis”, com a cantora trespontana Isabela Morais, que homenageia Bituca e sua grande amiga e parceira Elis Regina.

Notícias exclusivas e ilimitadas

O TEMPO reforça o compromisso com o jornalismo profissional e de qualidade.

Nossa redação produz diariamente informação responsável e que você pode confiar. Fique bem informado!