Por mais complexa que a prosa ou a poesia de uma obra possa ser, o ato de ler um livro é simples. Você abre o tomo e vai acompanhando o texto, virando as páginas à medida que isso se torna necessário. Nenhum grande mistério aí. É exatamente essa expectativa milenar na forma de consumir um texto que é subvertida em “S”, recém-lançado no Brasil pela editora Intrínseca e assinado por Doug Dorst e J.J. Abrams (sim, a mesma pessoa que criou as séries “Lost” e “Fringe”, além de dirigir filmes como “Super 8”, o retorno de “Star Trek” e o mais recente “Star Wars”).
Ao contrário do que promete a contra-capa da obra, onde pode-se ler “um livro, dois leitores”, o volume de 456 páginas contém dois livros, que, juntos, levam o nome de “S”, letra que ilustra a caixa na qual a obra é comercializada. E, obviamente, há um único leitor: você.
O primeiro dos dois livros é chamado “O Navio de Teseu”. Assinado por V.M. Straka, ele é o “último romance desse prolífico, porém obscuro escritor, no qual um homem de passado desconhecido é sequestrado e levado para um navio esquisito com uma tripulação apavorante e então embarca numa jornada perigosa e pertubadora”, como explicam Abrams e Dorst.
O segundo livro acontece nas margens (convenientemente largas) do primeiro. Ele é protagonizado por Jennifer e Eric, uma estudante universitária e um pesquisador. Sem nunca terem se visto, eles começam a conversar deixando anotações nas margens do texto e bilhetes, documentos e outros papéis dentro do tomo de “O Navio”. O relacionamento que começa na tentativa de desvendar o mistério que cerca o autor da obra acaba se tornando uma amizade à distância, na qual eles conversam abertamente sobre suas paixões, mágoas e medos nas páginas do livro, que é deixado nas prateleiras da biblioteca da universidade.
Graças a esse caráter duplo de “S”, o leitor tem diante de si um quebra-cabeça literário. “Por onde começar a leitura?”, por exemplo, é uma pergunta com diversas possíveis respostas. O leitor pode escolher ler o romance de V.M. Straka (que, por si só, não é nenhum marco da literatura). Pode também tentar ler somente as anotações nas margens (tarefa ingrata, uma vez que as frequentes referências à obra são incompreensíveis para quem não está lendo o texto). E é possível tentar ler os dois livros ao mesmo tempo. Ênfase no “tentar”, porque a leitura exige um esforço e uma concentração comparáveis aos de montar quebra-cabeças de 5.000 peças.
No fim das contas, “S” é uma grande ideia executada com um preciosismo editorial impressionante. O cuidado com a impressão, com os papeizinhos encartados e com as anotações (que parecem ser escritos reais a caneta, com letras radicalmente diferentes para Jennifer e Eric) são de tirar o fôlego. Como romance, porém, é comparável aos episódios finais de “Lost” ou “Fringe”: curioso, porém confuso – típico de Abrams.
Texto originalmente publicado em 16.1.2017
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