Kayla Lucas França, transexual não-binária, não se reconhecia como homem nem como mulher, “não cabia nessas caixinhas pequenas”. E pulou da janela de seu apartamento, em São Paulo, quarta-feira, dia 6 de fevereiro de 2016, por volta das duas da madrugada. Mas às 1h53 ainda estava acordada. Ouvindo John Frusciante e aquele mantra doído dizendo “o que eu realmente preciso é o paraíso / um lugar para onde eu possa realmente existir”. Postou no Facebook. E pulou. Caiu só de corpo. A alma fugiu. Kayla não se matou, que fique claro. Ela foi morta por gente como a gente, talvez você até conheça.
Nunca tive qualquer contato com Kayla – nem de nome. Mas soube do seu perfil revolucionário e sua luz explanatória pelas mensagens de alguns amigos se despedindo com variações de arco-íris, axés, lágrimas ou descrenças, mas sempre com os mesmos engasgos. Dizendo-a coisas como “desculpa por não ter percebido”, “a pessoa mais amável que já conheci”, “tá difícil de aceitar que nunca teremos um abraço seu por culpa desse mundo transfóbico”. E Kayla voando ao som de Jon Frusciante. “Sonhar pela vida afora, eu não devo nada”.
O jornalismo não costuma falar sobre suicídio – por acreditar que o mesmo possa incentivar outros a tal. Mas precisa começar a denunciar o assassinato transfóbico, misógino, racista, homofóbico. As pessoas estão enfrentando batalhas das quais não sabemos. E estão morrendo nessas lutas silenciosas. Apagadas em vazios agonizantes, rotuladas como aberrações loucas. Emudecidas com mordaças assassinas, sendo tratadas como judeus do século XXI condenados pela sociedade de bem que professa padrões de beleza e conduta que não podem fugir à risca bíblica, patriarcal ou comercial. Aquela sociedade que não tem nome, rosto, nada a dever no cartório divino, que compra pão do seu lado sorrindo com bom dia amistoso. A mesma sociedade que mata trans, mulher, negro, pobre e favelado todo dia com as mãos limpas.
O preconceito mora ao lado, na camisa do Luciano Huck que diz “o preconceito está na sua cabeça”. Não. O preconceito está no cerrar de dentes agressivos, na mão violenta, nos olhares fulminantes, no deboche humilhante, nas piadinhas sem graça alimentadas pelo nojo camuflado de cordialidade hipócrita. Aquele nojinho que você chama de opinião ou preferência, se esconde confortavelmente atrás da capa do preconceito – destilando a tríade de raiva, intolerância e covardia por onde passa.
Kayla foi empurrada da janela de seu apartamento por mãos que a apontaram como invisível. Por dedos racistas que a separaram de um mundo que se impõe branco. Por olhares cruéis que não aceitaram sua pele negra, seu cabelo afro e sua cultura periférica. Por um ódio gratuito, doente, transfóbico, que tentou impedi-la de ser a pessoa que é. Por que ela é.
Não estamos falando de fatalidade. Estamos falando de crime não previsto em lei, da falta de ar para continuar tentando respirar em meio ao caos. Talvez por isso Kayla tenha saltado com essa consciência dolorosa de quem não é daqui, infelizmente não pode ser. Em suas próprias palavras, como ela deixou anotado publicamente, quem sabe para revelar com o susto da morte o tamanho de suas ausências.
“Às vezes encarar nossas mentiras é mais pesado que encarar a realidade. E eu não consigo mais encarar essa realidade fantástica que eu criei. Covardia ou coragem? Demorei tempo para acumular coragem. Mas ela veio. Quando não aguentava mais suportar o dia a dia (queria continuar, mas já ‘num’ consigo respirar direito).
Como desistir de quem você é? Isso não significa a própria morte? E quantas vezes nós morreremos esse mês? Se tivesse mais vidas, daria todas elas por vocês. Queria só ter metade da força de vocês. Queria só ser metade do que vocês são. A vida tem seu sarcasmo. Ela é bonita. E isso é o mais cruel. Não, nada nunca é o fim. Hasta Simpre. Amo vocês”.
Que você consiga realmente existir, Kayla, voando por aí, mais serena, mais alegre. Mas que o seu grito possa nos dar força para que todas as pessoas consigam existir aqui também. Descobrindo seus sonhos sem medo de morrer por simplesmente querer ser o que são dentro desse mundo cão.
Texto em homenagem de um ano da morte de Kayla França, originalmente publicado em 6.2.2016
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