Querido tio. Sempre gostei dos doidos, desde os que enrolam fumo em papel de caderno até os incontroláveis por comer a vida a todo custo, rosnando bordões como aquele seu famoso “não mexe comigo, não”. Por isso, não se preocupe com qualquer sandice ou putaria escrita num e-mail enviado à 0h40. Fiquei surpreso mesmo é de descobrir que no auge das suas sete décadas vividas, logo agora, o computador está sendo útil a você em madrugadas insones. Dessas difíceis, em que uma tosse acirrada pode persistir noite adentro ou o remédio não fazer o efeito esperado, trazendo demônios à cabeça.
Não sei como as pessoas se viravam em 1962, mas fiquei pensando naquela história das sopas de arroz que te alimentaram por semanas nos tempos de apertar o estômago. Até cair no bolso um troco para voltar ao armazém com a boca salivando, numa época em que os supermercados automatizados não existiam.
Tive uma experiência parecida, mas não tão apelativa. Passei semanas à base daquelas promoções estampadas em cartolinas amarelas do centro da cidade: dez pastéis por cinco pratas. Uma combinação tão genial quanto enjoativa para encarar o esquema “segunda a sexta” de ônibus lotado e emprego formal. Vá lá, é só um exemplo pseudoburguês de desconforto, uma isca mordida por boa parte dos desavisados da minha geração, logo ao saírem da casa da mãe, cheios de planos, certezas no peito e vontades bem incompatíveis com nosso orçamento mensal mal-administrado. Caí nesse buraco.
É claro que depois de voltar à superfície da lucidez, inclusive a financeira, fiz a mesma coisa que você: encarei minha barba amarrotada no espelho e prometi sem deixas: nunca mais promoção de pastel. Não importa o que aconteça, nunca mais. E assim tem sido, desde então. Não sei se vai ser nunca mais, mas espero passar ao menos o meio século de vida que você tem conseguido manter a mesma promessa com as sopas de arroz. Tudo isso pode soar como uma apropriação de interpretações infantis bonitas e reduzidas, mas entendo que é só um formato mínimo para dizer que, haja o que houver, nós não vamos andar para trás na vida.
Recentemente você saiu de casa em uma das raras idas à rua e viu os restos dos fícus da avenida Bernardo Monteiro chorando, como uma pequenina amostra das doenças fabricadas nas metrópoles. Você mesmo grafou bem o espanto: “Os restos daquelas ex-magníficas árvores, todas podadas a motosserra, os troncos enfileirados, dando mais a impressão de um cemitério, como se aquelas madeiras largas e descabeçadas fossem um grupo de drogados depositados à força numa cracolândia ou nos círculos do Inferno de Dante”, tanto faz.
É a mesma impressão que tenho daquele viaduto da Francisco Sales, que abriu passagem para o progresso do trânsito ao inserir algumas toneladas de concreto como paisagem das janelas frontais de casinhas moldadas há 30 ou 40 anos, com suas ingênuas e simplórias varandas construídas certamente para abrigar a paz de domingos no quintal. Hoje, é como se aquela imensa construção de asfalto se apropriasse da vista cotidiana de seus moradores para lembrar, ao som de ambulâncias desesperadas e cheiro de combustível queimado, que o sonho acabou.
Felizmente eu e você não acreditamos nesse fim. Se quer saber, sou mais daquela tendência marxista escrachada e safa de que “tudo que é sólido desmancha no ar”. No melhor sentido da explosão desbocada, fodam-se as grandes obras e essas opiniões bobas de família, tio. Vai tudo virar pó no fim das contas, certo? A melhor coisa que a gente faz é não se acomodar com os incômodos, assumir os palavrões que saem da nossa boca, virar nossas cachaças goela abaixo, dar o pulo do gato, se for preciso, mas não desistir de construir uma casa no meio do mato ou de qualquer sonho que pode estourar como as bolhas de sabão a que sempre me refiro.
Talvez isso tenha me deixado mais atônito ao ler sua carta de vontades engasgadas de viver. E não por saber que você ainda tem que aguentar a puta encheção de saco de um cilindro de oxigênio acoplado ao corpo. Mas por ler que até as rugas e rusgas do seu discurso são quase virgens, afloradas na epiderme de um ainda menino que não perdeu a confiança para o que der e vier, como nos tempos em que descia um morro do Vera Cruz de carrinho de rolimã. Quase a mesma sensação que, em algum tempo recente, eu tinha ao cruzar todas as ruas do centro da cidade de bicicleta.
O que quero dizer é: temos em comum a certeza de que não queremos ser a plantinha que brota na rachadura cimentada, como ervas daninhas nas medianeras de um prédio enorme, alarmando socorro lá de cima: “Estou quebrando o sistema ou fazendo a minha parte ou existindo ainda que sem possibilidades de ter um propósito”. Não.
Queremos ser janelas límpidas do teto ao chão, raízes alongadas pelo solo com muito adubo, chuvas quentes de verão sem hora marcada para molhar os corpos das pessoas que amamos, horizontes não capturáveis por completo pelas lentes fotográficas. Simplesmente queremos. Porque esse é o tipo de coisa que nos faz sentir vivos. São esses sentimentos que vão ligar a ala utópica-marginal-e-porra-louca das nossas gerações futuras. Tudo regado a muita cerveja. Pode acreditar.
Texto originalmente publicado em 15.8.2015